sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Umberto Eco e J.-C. Carrière, A Obsessão do Fogo

Enquanto não termino a leitura deste livro fascinante, deixo alguns excertos que revelam a riqueza do conteúdo:

«Irá o livro desaparecer com o aparecimento da internet? Escrevi sobre o assunto a seu tempo, isto é, no momento em que a questão parecia pertinente. [...] Com a internet, regressámos à era alfabética. Se alguma vez julgámos ter penetrado na civilização das imagens, eis que o computador nos reintroduz na galáxia de Gutenberg e toda a gente se vê de ora em diante obrigada a ler. [...] Se passar duas horas no seu computador a ler um romance, os seus olhos tornar-se-ão bolas de ténis» (UE, 19-20)

«Num determinado momento, os homens inventaram a escrita. Podemos considerar que a escrita é o prolongamento da mão e, nesse sentido, ela é quase biológica. É a tecnologia da comunicação imediatamente ligada ao corpo» (UE, 23)

«Assim, os nossos bons velhos DVD passarão, também eles, para a arrecadação, a menos que conservemos os antigos aparelhos que nos permitam visioná-los.
Está é aliás uma das tendências do nosso tempo: coleccionar o que a tecnologia se esforça por desactualizar. Um dos meus amigos, um cineasta belga, conserva na sua cave dezoito computadores, simplesmente para poder continuar a visualizar trabalhos antigos. Tudo isto para dizer que não há nada de mais efémero que os suportes duradouros» (JCC 29)

«O culto da página escrita e mais tarde do livro é tão antigo quanto a escrita. Já os romanos desejavam possuir e coleccionar os rolos de papiro. Se perdemos livros foi por outras razões. Eles desaparecem por razões de censura religiosa ou porque as bibliotecas tinham tendência para arder à mais pequena oportunidade, tal como as catedrais, uma vez que umas e outras eram em grande parte construídas de madeira. [...]
Foi provavelmente a chegada dos bárbaros a Roma por repetidas vezes e o seu hábito de incendiar a cidade antes de a abandonar que fez pensar em encontrar um lugar seguro para aí colocar os livros. E o que seria mais seguro do que um mosteiro?» (UE 34-35)

«Descobrimos nos museus que as camas dos nossos antepassados eram de pequenas dimensões: logo, essa gente era mais pequena. O que implica necessariamente um outro timbre de voz. Quando escuto um disco antigo de Caruso, pergunto-me se a diferença entre a sua voz e a dos grandes tenores contemporâneos se deverá unicamente à qualidade técnica da gravação e do suporte, ou ao facto de as vozes humanas do início do século XX serem diferentes das nossas. Entre a voz de Caruso e a de Pavarotti, há décadas de proteínas e de desenvolvimento da medicina» (UE, 36-37)

««Pedi uma vez a estudantes de som, como exercício, que constituíssem certos ruídos, certos ambientes sonoros do passado. [...] Frisando que os pavimentos eram de madeira, as rodas das carruagens de ferro, as casas mais baixas, etc.» (JCC, 37)

«Joguei com o meu neto que, aos sete anos, se exercitava num desses jogos electrónicos por que tem afeição e fui severamente batido por dez contra 280. Contudo, sou um antigo jogador de flipper e muitas vezes, quando tenho algum tempo, jogo no meu computador a matar monstros do espaço, em todo o tipo de guerras galácticas, até com algum sucesso». (UE, p. 52

«Nas suas deslocações no final do século XVIII, os aristocratas transportavam consigo bibliotecas de viagem em pequenas malas. Em trinta ou quarenta volumes, em formato de bolso, eles não se separavam de tudo aquilo que uma pessoa virtuosa devia conhecer» (JCC, p. 58)

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Comer em Roma

Já lá vão uns meses desde que o Comilão e a sua senhora visitaram a Cidade Eterna. Mas vale a pena dedicar um post ao que se come por ali.

Aqui ficam imagens de quatro refeições:
- Orso d'Oro (3 estrelas). Os antipasti da casa tinham uma variedade notável
- Navona Notte (4 estrelas) - muito bom e muito em conta. Pratos recomendados: a terrina de melanzane (beringela) com mozzarella para entrada, as pizas, o tiramisù. Os pratos mais caros não são necessariamente os melhores
- Uma trattoria cujo nome não recordo, onde comi uns ovos estrelados com trufa memoráveis e uns ravioli negros com gambas





sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Bon Scott (1946-1980)



Aqui fica um apontamento pouco habitual sobre uma lenda do rock (tirado do artigo de Petter Watts, 'Highway to Hell', na Uncut de Dezembro de 2013)

A 20 de Fevereiro de 1980, quando os AC/DC se preparavam para gravar Back in Black, Scott morreu de intoxicação por álcool no lugar do passageiro de um Renault 5 estacionado à porta de um apartamento em East Dulwich. Tinha passado a noite anterior a beber no Music Machine, uma discoteca em Camden Town. «Da forma como ele vivia, não foi nenhuma surpresa», diz o baixista dos AC/DC Mark Evans. «O que não significa que não tenha sido um choque terrível».
«Era um tipo fantástico, um ser humano verdadeiro, muito diferente daquilo que as pessoas pensavam», comenta Peter Clack, um dos primeiros bateristas da banda. «Era honesto, sincero, despretensioso, nada de tretas, trabalhador».
Murray Gracie, guitarrista de uma das primeiras bandas de Scott, lembra-o como «um filho muito respeitador. Os pais dele vinham assistir a imensos espectáculos, e ensaiávamos em casa deles».
«O Bon podia ocupar o palco e fazer com que as palavras quisessem dizer alguma coisa. Ele fazia estes números lentos e as miúdas ficavam loucas», diz Gracie acerca os anos 60, quando eram ainda adolescentes. «Quando cantava, acreditávamos nele», diz Tony Platt, que misturou Highway to Hell.
«Do que ele gostava mesmo era de álcool. Já nessa altura ficava completamente bêbedo. Tocávamos em clubes de surf e quando era altura de tocar encontravamo-lo desmaiado na praia. Levavamo-lo para dentro e atiravamo-lo para um canto com um microfone. Não conseguia tocar bateria, mas conseguia cantar». Para o teclista John Bisset «Ele bebia até mal se aguentar em pé. Mas permanecia sempre a mesma pessoa».
«Metíamo-nos na marijuana, mescalina e cogumelos, mas o álcool era o nosso esteio», diz ainda Bisset. Uma vez, Scott impressionou os locais ao atirar-se de um pontão para um 'cardume' de alforrecas. «A alcunha dele era Road Test Ronny, porque sempre que aparecia uma nova droga ele estava pronto para a experimentar», diz Peter Head. «Uma vez fomos tocar a uma prisão. A maioria dos tipos estavam presos por droga, sobretudo marijuana, e o Bon parecia conhecê-los a todos».
Em Maio de 1974, Scott quase morreu. Motociclista entusiástico, apreciava uma abordagem à segurança na estrada tipicamente descuidada. Andava de mota nu, bêbedo, a subir e descer escadas para divertir as pessoas.Depois de ter discutido com o baixista Bruce Howe, arrancou na sua mota. «Meia hora depois soubemos que estava em coma», diz Bisset.
«O Bon era um poeta de rua», diz Michael Browning, manager dos AC/DC. «Ele descrevia-a como poesia de parede de casa-de-banho».
Depois da morte de Scott, os AC/DC contrataram Brian Johnson para o substituir. A primeira tarefa de Johnson foi gravar Back in Black - o título, a capa e o sino no início foram uma homenagem a Scott. O álbum conquistou o n.º 1 do top. ««Todos o adoravam. Era um cavalheiro, adorava divertir-se, óptima companhia», remata Mark Evans, que deixou a banda em 1977.

As mil e uma noites

«Em nome de Deus, o Misericordioso, todo de misericórdia. Louvor a Deus, senhor dos mundos. A oração e a salvação estejam com o melhor dos Enviados, nosso senhor e mestre Maomé e com a sua família. Que a oração e a salvação se juntem a ele até ao dia do Juízo».

Não, o Comilão não se converteu ao Islão. São apenas as primeiras linhas de As Mil e uma Noites.

Na origem da história estão dois reis irmãos.O mais velho, Shahriyâr, convida o mais novo, Shâh Zamân, a visitá-lo. Após dez dias de preparativos, o cortejo parte em direcção ao reino do irmão mais velho. «A meio da noite, ele apercebeu-se de que se tinha esquecido de uma coisa que o fez voltar atrás. Ao entrar no seu palácio, encontrou a sua mulher deitada no leito real com um escravo das cozinhas. Este espectáculo mergulhou-o nas trevas».

Shâh Zamân foi visitar o irmão, mas acabou por perceber que também este era escandalosamente enganado. E assim partiram os dois, até encontrarem uma mulher que os seduziu. Também ela, descobriram, enganava o génio com quem era casada...

«De regresso ao seu palácio, Shâriyar mandou decapitar as suas mulheres, servas e escravas. [...] Pôs-se então cada dia a desposar uma jovem, filha de príncipe, de chefe militar, de comerciante ou de gente do povo, a desflorá-la e a executá-la nessa mesma noite. Isso durou três anos. A cidade foi tomada pelo tumulto. Às tantas já não havia virgens na cidade. O vizir, encarregado de fornecer-lhe as raparigas, ficou preocupado. Uma das suas filhas, Shahrázâd, propôs-se a ir».

A mais antiga referência que se conhece é um manuscrito do século IX com a página do título, ainda com o número mil, e o início do texto. No século X, o historiador Mas'ûdî faz uma referência em Prados de Ouro: «Quanto ao resto, todos ou quase todos os que estão ao corrente da História têm este género de tradições por puras invenções, fabricadas ou embelezadas por pessoas que procuravam, ao ler ou ao debitar estes relatos, aproximar-se dos príncipes e assegurar as suas empresas ou dos contemporâneos. É o caso dos livros que nos chegaram a partir das tradições do persa, do sânscrito ou do grego. Assim é a obra chamada Hèzar afsâné, o que se diz, em árabe, Mil Relatos Extraordinários. Este livro é conhecido pelo nome de Mil e uma Noites. Conta a história de um rei, do seu vizir, da filha deste Shérâzâd e da sua serva Dînâzâd. Também se pode contar neste categoria Farzî u-Sîmâs, com as suas histórias dos reis da Índia e seus vizires, o Sinbad e outras recolhas do mesmo género.
[...]
No final do século X, um livreiro de Bagdad, Ibn an-Nadîm, deixou-nos no seu catálogo de livros conhecidos um desenvolvimento sobre os relatos que circulam nos serões e os contadores de histórias extraordinárias».

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Sandes mista com ovo embrulhado

Esta é a famosa sandes mista do comilão: pão rústico, fiambre (pode ser da perna, fumado ou de frango), queijo flamengo. E o que é isso do ovo embrulhado? É um ovo estrelado (em manteiga sem sal fica mais saboroso), em que se põe a clara por cima da gema, daí ficar embrulhado. Para rematar, umas folhas de agrião, que podem ser ou não temperadas com azeite e sal grosso.

Páteo do Faustino, Torres Vedras

Ao que parece, todos os torreenses conhecem o Páteo do Faustino. Se não soubermos onde fica, basta perguntar na rua que logo nos indicam o caminho.
Já passava das 14h30 e o Comilão e a sua família estavam esganados de fome. A sala encontrava-se quase cheia de comensais de aspecto satisfeito, mas havia lugar. Para começar, um bom pão com manteiga. A seguir, uma sopa do dia (creme de cenoura, bom, só foi pena nunca, em lado algum, a sopa vir a uma temperatura razoável, mesmo que se peça morna). Depois, pratos principais, uma espetada de polvo à Faustino e um rosbife (bife) grelhado. Os pratos do dia incluíam dobrada e bacalhau à casa (que já tinha terminado).
A espetada vinha já fora do espeto, com os pedaços de polvo (uns muito tenros, outros menos) entremeados por tiras de bacon. Acompanhava com batata tipo noisette, muito saborosa, e um belo feijão verde. De apontar apenas o excesso de molho de manteiga derretida no fundo da travessa - um bom azeite teria sido melhor opção. O bife era muito tenro e saboroso, com carne de qualidade.
Sobremesa da casa: mousse de chocolate coberta com bolacha embebida em café e chantilly (excelente).
Serviço simpático, nem sempre tão rápido quando desejado, o que se justifica em parte devido à hora adiantada, em que alguns empregados já se encontram recolhidos na cozinha.
Preço muito razoável: 34 euros, refeição para três pessoas.

Páteo do Faustino
Largo do Choupal, Torres Vedras
Tel.: 261 324 346
tem sala de fumadores
4 estrelas
Veredicto do Comilão: boa comida tradicional, doses bem servidas, ambiente simpático e preço convidativo

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Choupana Caffe

Já havia lido sobre o famoso brunch - essa instituição tão portuguesa - do Choupana, na avenida da República, e decidi experimentar. O interior é simpático, no estilo modernaço que ora se usa.
Pedimos salgados - não havia. Na carta falava em sopa com legumes frescos preparada diariamente, mas a nossa sabia a sopa instantânea. Depois veio uma tosta e uma sandes - perfeitamente banais. Os empregados envergavam t-shirts apregoando a sua simpatia e disponibilidade, mas o serviço foi desorganizado e não primou pela cortesia. Por fim, a conta veio com um artigo a mais (um erro compreensível, diga-se, já que resultou de um pedido entretanto cancelado).
Mas, e há sempre um mas, não é verdade? Havia uma surpresa reservada para o final, que acabou por salvar a refeição: o doce da casa, o Choupana, uma espécie de embrulhozinho de massa filó (?), recheado com doce de ovos, amêndoa e canela. Uma coisa verdadeiramente divinal que me fará regressar a um lugar que, de resto, não me deixou convencido.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Noite e dia: duas fotos à chuva



Camarão-tigre

Estavam com promoção no Pingo Doce (três camarões-tigre jumbo, c. 600gr, 16€).

Foram escalados e grelhados na chapa de ferro, com sal grosso.

À parte, foi preparado um molho de manteiga (sem sal) derretida, alho picado e malagueta.

Acompanhou com arroz branco.

Foi uma pena o Comilão estar sem paladar, porque parecia delicioso.



terça-feira, 15 de outubro de 2013

The spider

Estou a ler Fragmentos do meu Diário, de Maxim Gorki, num banco da estação de Algés, à espera do meu comboio para o trabalho. O escritor está a contar como encontrou Makov, um peculiar negociante de antiguidades, num barco a vapor para Kazan, que navegava de noite no meio de um espesso nevoeiro. O que se segue é o relato de Makov:

« "[...] E quando abri os olhos, ali à minha frente estava uma criatura estranhíssima - uma aranha de seis pernas, do tamanho de uma cabra pequena, com uma barba e cornos e seios de mulher. Tinha três olhos, dois na cabeça e o terceiro entre os peitos, virados para baixo, a olhar para os meus pés. E onde quer que eu vá ela segue-me, toda peluda, com as suas seis pernas, como uma sombra da lua, e ninguém consegue vê-la a não ser eu, e - aqui está ela! Não a vês, mas está aqui!"
Esticando o seu braço para a esquerda, Makov fez uma festa com a mão a alguma coisa no ar cerca de meio metro acima do convés. Aí limpou a mão no joelho, dizendo:
"Está molhada."
"Queres dizer que tens vivido assim, com a aranha, ao longo destes últimos vinte anos?" perguntei.
"Vinte e três. Ele é o meu guarda, e agora está a ficar doente, a aranha."
"E já falaste com um médico sobre isso?"
"Então, homem, o que poderia um médico fazer? Não é um abcesso que tu possas cortar com um bisturi ou queimar com ácido carbólico ou tirar esfregando com um unguento. Um médico não consegue ver a aranha."»

Mas eu consigo vê-la. Está na manga do meu blusão de pele, a aproximar-se perigosamente do meu pulso. É de cor creme ou amarelada, semi-transparente, e não tem o tamanho de uma cabra: é uma aranha pequena, ainda assim com tudo muito bem definido, inclusive a boca, que parece ter pequenos dentes. Cheio de repulsa, afasto-a com um sopro forte, mas vejo-a presa a uma teia, que trepa até chegar de novo à manga do meu blusão.

Qual é a possibilidade de isto acontecer? De eu estar a ler um capítulo que se chama 'The Spider' e, no preciso momento em que estou a ler sobre uma aranha, olhar para o lado e aparecer-me uma aranha bem real perto da minha cara?! Por que não li estas linhas ontem à noite, como estava previsto? Cépticos e especialistas das estatísticas, expliquem-me, por favor: qual é a probabilidade de isso acontecer?

Venço o receio e deixo a aranha passear à vontade pelo casaco. Acompanho-a com o meu olhar como se fosse um animal de estimação. Chega a tocar-me nos pêlos do pulso, que se eriçam. Depois ela parece ficar assustada, como se percebesse que pode correr perigo. Afasta-se da minha pele e eu prossigo a leitura.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Próximos posts

O Gadanha
1.º Direito
Casa do Polvo

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Salsa e Coentros

O Salsa e Coentros, em Alvalade, é um restaurante de matriz alentejana, com boa comida assente em matérias-primas de qualidade.
Visitei-o em duas ocasiões próximas. Da primeira houve sopa de beldroegas com ovo escalfado e queijo de cabra (boa), míscaros com ovos mexidos (bom) e rosbife (no ponto, cortado como mandam as regras, só podia ter um pouco mais de sal).
A segunda refeição, foi mais à base das entradinhas, que merecem nota (e também estiveram na primeira refeição, mas não vale a pena repetir): pimentos assados, as famosas e deliciosas empadas miniatura, presunto Pata Negra, favinhas, e depois uma alheira (muito boa).

O Salsa e Coentros tem uma clientela fiel e famosa. Das duas vezes que lá estive vi Maria de Belém com o Padre Milícias (1.ª) e Vasco Graça Moura (2.ª). É um restaurante que mantém a qualidade em padrões muito elevados mas que, quanto ao Comilão, não chega a àquele ponto de deslumbrar. Ainda assim, uma aposta sempre segura a preços razoáveis.
as entradinhas

o presunto Pata Negra, finamente fatiado

a sopa de beldroegas com ovo escalfado (é prato principal)

o rosbife - no ponto

Jantar de restos

Aqui fica uma foto de um jantar de restos:
ervilhas sem ovos escalfados
favas com chouriço (e cogumelos, uma 'invenção' que não resulta mal)
salada de ovas de pescada, feita com as sobras do almoço





Só posso dizer que foi uma bela refeição.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Walker, Spiritual and Demonic Magic from Ficino to Campanella


Há muito que o Comilão ambicionava ler este clássico sobre a magia no Renascimento. Já o havia tentado, mas as abundantes notas de rodapé com trechos em latim acabaram por fazê-lo desistir. Pois bem: desta vez decidi ignorar as ditas notas e avançar para uma leitura mais escorreita.

O livro começa com uma explanação da teoria da música de Marsílio Ficino, o grande humanista e filósofo neoplatónico (1433-1499), que acreditava que era possível, através da música, atrair as influências benignas dos planetas. O facto de tanto a música como o espírito serem elementos aéreos fazia, segundo Ficino, com que aquela interagisse directamente com este.

O primeiro sublinhado aparece numa nota de rodapé (p. 20), uma informação curiosa:
«[Ficino] descreve como na Apúlia aqueles que são mordidos por uma tarântula são curados por uma música especial que os põe a dançar»

Mais adiante, no capítulo sobre Lazarelli (p. 69):
«Isto é novamente a analogia com a a criação divina através da Palavra, mas na versão cabalística segundo a qual Deus criou o universo através das 22 letras do alfabeto hebraico. Confirma o que já se podia adivinhar no preâmbulo ao hino - que Lazarelli mantém uma teoria mágica da linguagem, que acredita que as palavras têm uma ligação real e não convencional, às coisas, e podem exercer influência sobre elas».

Depois da música planetária, o poder mágico das palavras, capazes de actuar sobre o real.

Novo sublinhado na página seguinte:

«Pois Joannes Mercurius era de facto muito estranho. Apareceu em Roma em 1484 usando uma coroa de espinhos com a inscrição: 'Hic est puer meus Pimander quem ego elegi', pregando e distribuindo folhetos; em Lyon, em 1504, usando o mesmo adereço, realizou milagres de magia natural e prometeu a Luís XII um filho e mais vinte anos de vida. Era um magus milagreiro, que havia sido, como nos diz Lazarelli, regenerado pelo próprio Hermes Trimegisto».

Um excerto já do último capítulo (p. 205):
«Em 1599 Campanella foi posto na prisão em Nápoles, após o falhanço da sua revolta, que deveria ter estabelecido a sua utópica e altamente heterodoxa Cidade do Sol. Em 1603, após torturas abomináveis, foi condenado a prisão perpétua, como herético; havia escapado à pena de morte simulando loucura. Continuou em Nápoles, escrevendo profusamente, até 1626, quando foi libertado pelos espanhóis. Mas após alguns meses era de novo detido e colocado numa prisão em Roma. A sua última esperança estava largamente depositada no Papa, como antes havia estado no Rei de Espanha e no futuro haveria de estar no Rei de França»

À frente, vamos encontrar Campanella e o Papa juntos a praticar rituais 'suspeitos':
«Primeiro isolavam o quarto do ar exterior, depois borrifavam-no com vinagre de rosa e outras substâncias aromáticas, e queimavam louro, mirtilo, rosmaninho e cipreste. Penduravam panos brancos de seda e decoravam o quarto com ramos. Então, duas velas e cinco tochas, representando os sete planetas, eram acesas; [...] Havia música Jovial [Júpiter] e venérea, que servia para dispersar as qualidades perniciosas do ar infectado pelo eclipse e, simbolizando os bons planetas, expulsar as influências dos maus» (p. 205)

D.P. Walker
Spiritual and demonic magic from Ficino to Campanella
258 págs.
35,80€ (na bookdepository, o meu exemplar foi adquirido através da Amazon)
2,5 estrelas (todo o livro anda muito à volta de Ficino e dos seus seguidores ou comentadores)

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Assador by Olivier

(foto tirada do Facebook. Ao contrário do que acontece com frequência, corresponde à realidade)

Não é uma personagem com a qual o Comilão simpatize (há outro post dedicado ao seu restaurante do Tivoli). Mas o seu restaurante de grelhados, no CC Monumental, tem um aspecto muito tentador, pelo que o Comilão trocou a costumeira refeição no Riverside (que infelizmente nos últimos tempos parece ter perdido qualidades) pelo dito. As propostas eram: franguinho, rosbife, piano de vitela de leite, qualquer coisa de porco preto (manta).
O Comilão pediu o franguinho, partido em pedaços pequenos e com um tempero argentino - a que eles chamam qualquer coisa como 'chimichurri', muito bom -, acompanhado por boa batata assada no forno com alecrim e um arroz árabe com um belo tom castanho que prometia muito mas não convenceu.
Pena a pouca quantidade de frango (1/2 pequenino). Ainda assim, nota bastante positiva para este Assador. É para repetir. Da próxima o Comilão vai querer experimentar o piano.

Actualização (06/01/2014): Da segunda vez comi a manta. Estava excelente. O rosbife, pelo que me foi dito, assim-assim. Da terceira vez, a manta tinha acabado de esgotar e não havia o piano, tive de ir para o franguinho, muito bom, dentro do que já foi dito. E desta vez o arroz árabe também estava bom. Só as sobremesas é que não convenceram: arroz doce (fraco) e mousse de chocolate (abaixo da média). Também fazem muito alarido com o pastel de nata mas pareceu-me relativamente banal.


manta de porco preto com arroz árabe: muito bom (esta foto já é de minha autoria)

Assador by Olivier
CC Monumental (Saldanha)
preço da refeição ronda os 8€
nota do Comilão: 3,5 estrelas
Atenção que as doses são pequenas!

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Atira-te ao rio

Jantar memorável na passada sexta-feira. Um fim-de-tarde glorioso, com uma temperatura ideal, um pôr-do-sol maravilhoso, uma vista de Lisboa soberba... começam a faltar-me os adjectivos.

E boa comida. Apesar da situação única (não é exactamente única porque há o Ponto Final, mas pouco importa), o Atira-te ao Rio mantém a qualidade da comida, não se encostando à sombra da bananeira.

Para começar, bom pão, manteiga de alho e ervas e uma pasta (atum?, já não me recordo). Azeitonas com alho e orégãos. Houve quem provasse o gaspacho e o considerasse 'divinal'. O Comilão optou pelo porco preto na grelha (a habitual carne muito gorda que quase se desfaz na boca), bastante bom, com batatinhas assadas e arroz. O carré de borrego tinha óptimo aspecto, JB comeu a picanha e não se queixou, as gambas al ajillo mereceram elogios.

Já as sobremesas não convenceram quem as pediu (não foi o meu caso).

Uma palavra para o serviço: a cozinha está muito longe das mesas, o que atrasa os pedidos mais simples. Começou mal, mas depois chegou um empregado que deu conta do recado.

Tudo somado, um lugar que merece ser visitado mais vezes, assim as condições climatéricas ajudem, e as condições financeiras o permitam (não é barato). A vista é o grande trunfo - e que trunfo - mas não o único.

Atira-te ao Rio
Cais do Ginjal
32 euros (190 euros refeição para seis pessoas)
4,5 estrelas (comida 3,5)

Rounders: a vida é um jogo

Belo filme sobre os dilemas de um jogador de póquer, com um grande elenco: Matt Damon (Mike), Edward Norton (Worm), Martin Landau (professor) e John Malkovich (KGB). Houve uma deixa que o Comilão fixou: «Podes tosquiar uma ovelha vezes sem conta, mas só a podes esfolar uma vez».

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Delidelux

A mercearia fina e da moda, perto do 'triângulo' Lux-Loja da Atalaia-Bica do Sapato' também serve refeições ligeiras. Há brunch para os apreciadores (não é o meu caso), empadas (boas) e sandes. A favorita do Comilão é a Ciabata com fiambre fumado, muito boa, acompanhada por uma saladinha mista com alface, tomate cherry bem maduro, cebola e balsâmico. No último sábado experimentámos o tramezzino (triângulo de pão de forma aparado) de camarão com maionese de lima. Bons pedaços do bicho, muito agradável, para variar. Também já comemos a sandwich club, boa mas não excelente. Para fechar, cheesecake com frutos silvestres, muito bom. Café Illy, considerado o melhor pelos especialistas. Pena foi que a vista para o rio estivesse obstruída por um navio de cruzeiro holandês com o casco preto.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A bicha: Baixa-Mar, Santa Luzia

O Baixamar é um velho conhecido do Comilão. A sua 'bicha' de polvo e camarão, uma espetada que também leva cebola, churiço e pimento e vem acompanhada de aziete quente com alho, para regar, é um pitéu delicioso. O dono do restaurante, como seu sentido de humor que nem todos apreciam, aproveita sempre para fazer uma piada. Quando lhe perguntam o que é a bicha, pode dizer, com o seu sotaque algarvio: 'Aqui a bicha é uma espetada de polvo e camarão, que traz azeite quente com alho à parte. Mas não sei o que é para os senhores, que eu cá não gosto de me meter na vida dos outros'.

O Comilão também é fã das amêijoas à Bulhão Pato (receita tradicional, com alho e coentros), tal como era do bife com pimenta preta, que já não existe. Na mais recente refeição no Baixa-Mar provámos o Petisco de polvo-rei, com pimentos e natas, combinação aparentemente duvidosa, mas que resulta muito bem (o dono disse-nos que Rosa Lobato de Faria dedicou um poema ao dito petisco). Para a mesa vieram ainda uns bifinhos de frango grelhados (para as crianças), também bastante bons. Para quem gosta, há uma sopa de peixe, que o Comilão nunca provou. O espaço é agradável, tipo edifício de pato bravo, com mosaico de cozinha por todo o lado, mas decorado com algum cuidado (gravuras de baleias nas paredes) e boa amesendação.

Concluindo: comida bem trabalhada, boas matérias-primas, receitas originais dentro da tradição. Agora vem o senão: sem ser exorbitante, o Baixa-Mar é um restaurante careiro, praticando preços bastante mais altos do que a concorrência. A bicha, por exemplo, custa 15,5 euros, mas é um must da casa. A última refeição ficou por 62 euros (três pessoas).

Baixa-Mar (também conhecido por restaurante da bicha)
Avenida Duarte Pacheco, Santa Luzia
classificação do Comilão: 3,5 estrelas
veredicto: bom mas relativamente careiro

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Férias e fins-de-semana

Há uma altura do ano em que os fins-de-semana perdem todos o seu brilho e encantos. Durante o resto do ano são um bálsamo, mas durante as férias irritam-me. Dir-me-ão que que são os fins-de-semana que esticam as férias. Eu sei tudo isso. Sei que é graças a eles que posso descansar durante 15 ou 16 dias consecutivos. Ainda assim...
Ainda assim, ainda que conheça os benefícios que me traz - inclusive durante as férias -, ao fim-de-semana não consigo evitar ficar algo irritado ao pensar que os meus colegas que não estão de férias também não foram trabalhar. Como é que é isso?! Eu aqui a queimar as minhas feriazinhas e eles, que 'teoricamente' estão a trabalhar, também descansam? Também acordam tarde? (tenho de reconhecer que isso também me passa pela ideia à hora a que eles largam do trabalho...)
E depois há o domingo: mesmo que na segunda-feira não vá trabalhar, há sempre um sentimento de melancolia despertado pelo final da semana. Felizmente no dia seguinte já é segunda-feira e posso imaginar os meus colegas no escritório, a penar com o calor, enquanto eu me refresco no mar e bebo vinho à refeição.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Bom gosto

Após décadas a frequentar restaurantes, o Comilão concluiu que o mais importante no ambiente de um restaurante não é estar decorado com bom gosto. O mais importante é:
1. o cliente sentir-se bem
2. higiene (para se confiar na comida)
3. conforto
E este conforto até é compatível com (se não acentuado por) um ou outro toque de piroseira inofensiva. O excesso de bom gosto na decoração, pelo contrário, pode tornar-se intimidatório.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Chatwin, O Vice-Rei de Ajudá

Bruce Chatwin era um especialista da Sotheby's em pintura impressionista (havia começado na leiloeira como porteiro) quando foi visitar a arquitecta Eileen Gray, de 92 anos, e viu um mapa da Patagónia na parede. Ao fazer um comentário sobre a região, a idosa contou-lhe que toda a vida havia querido visitá-la mas já não ia a tempo. «Vá lá por mim», pediu-lhe. Chatwin despediu-se do emprego e foi. Dessa viagem nasceu o seu célebre livro Na Patagónia.

O livro seguinte que Chatwin escreveu foi O Vice-Rei de Ajudá, que conta a história do traficante de escravos Francisco Félix de Sousa. «Chegou à Costa nos primeiros anos do século XIX e estabeleceu a sua base no forte português de Ajudá, que, nessa época, era a principal fonte de mão-de-obra das minas e plantações do Brasil». (Prefácio) «Na década de 1830 era o homem mais rico da África Ocidental e a besta-fera dos abolicionistas ingleses. Morreu na ruína». (idem)

Aqui ficam alguns sublinhados da leitura, notáveis pelas suas qualidades literárias, sem pretensão de resumir a história:
«As tempestades de poeira poliram-lhe a pele. A sua roupa tresandava a leite azedo e a cavalo» 60
«E gostava da sua casa simples com as cabaças e melões a crescer irregularmente por cima do alpendre e as suas paredes ocres que chupavam a luz do sol» 62
«Joaquim Coutinho tinha os olhos escuros magoados que se aguavam com o vento. Trazia a roupa coberta por uma película aveludada de pó» 67
«Traficantes de todas as províncias lançavam-se para a frente à cotovelada, com gritos roucos, ao identificarem os ferros dos consignatários. Calculavam o número de mortos; depois obrigavam os sobreviventes a correr, a bater com os pés no chão, a erguer pesos e a berrar para mostrarem a saúde dos pulmões.
Os que tinham defeito eram vendidos barato aos ciganos.
Francisco Manoel tornou-se amigo de um desses ciganos negociantes de escravos, que lhe ensinou alguns truques do negócio: como esconder uma desinteria sangrenta com um batoque de estopa, ou uma doença da pele besuntando-a com óleo de castor» 74
«quando as mulheres se debruçavam nas suas meias portas, pareciam estar a usá-las como um prolongamento dos seus vestidos» 126
«Ao fim de algum tempo, parecia estar a murchar com o calor. O cabelo pendia-lhe como caudas de rato e inchou-lhe a cara com erupções cutâneas» 127
«Era irmão de sangue do rei: era crime tocar num cabelo da sua cabeça, contudo até os próprios filhos falavam dele no passado» 137

Bruce Chatwin
O Vice-Rei de Ajudá
tradução de Carlos Leite
3-3,5 estrelas - (belas passagens, mas a história às vezes não está bem ligada, carecendo de fluidez)
Quetzal, 2.ª edição, 1994
(oferecido pela Tia Manela, como presente de aniversário, provavelmente no Natal de 94)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

2 À Esquina

Foi uma bela surpresa este 2 à Esquina, perto da Almirante Reis, onde a família do Comilão foi para o aniversário do seu amigo "Porco". O 2 à Esquina define-se como um lugar «dedicado aos petiscos e iguarias portugueses», com «pratos simples e honestos». Não era essa a ideia que o Comilão levava, ao ver entre as especialidades uma «morcela com ananás».
Nas entradas havia um bom pãozinho com pasta de grão (?). Mas o que brilhou mesmo foram os pratos principais: uns secretos de porco preto com coentros que estavam simplesmente deliciosos, e um polvo tipo à lagareiro que não tinha grande aspecto mas estava tenríssimo e muito saboroso. Houve quem pedisse o arroz de lingueirão e não ficasse muito satisfeito - isto embora o tempero, segundo se disse, estivesse bom. Das sobremesas, o Comilão experimentou a mousse de lima, muito bem feita, com bela consistência e sabor a condizer.
Serviço muito simpático, eficiente e apostado em agradar aos clientes, recebendo os sucessivos pedidos com um sorriso no rosto. Ambiente requintado, intimista e decoração com bom gosto. Bela e ampla mesa para jantares de aniversário e outras celebrações.

2 à Esquina
Rua Capitão Renato Baptista, 2
Preço por pessoa (jantar de aniversário com pratos partilhados): 25 euros
Serviço irrepreensível
Tel. 21 801 13 50
Veredicto do Comilão: recomendado. Os secretos são das coisas mais deliciosas que comi nos últimos tempos (a fome era negra e ajudou)
4 estrelas

Tavola Calda, Algés

Perto da bomba de gasolina da Cipol, em Algés, fica o restaurante Tavola Calda (em Itália a designação 'tavola calda', que significa 'mesa quente' aplica-se aos restaurantes mais modestos). Aberto há cerca de um ano, apresenta um ambiente alegre e moderno (que terá requerido algum investimento...), com luzes no chão, grandes espelhos, cores fortes, um tecto falso trabalhado com motivos contemporâneos. O Tavola Calda pertence ao mesmo proprietário do Lucca e do La Finestra e o pizzaiolo trabalhou no Casanova, de Santa Apolónia.

Vamos à comida. Como couvert, azeitonas pretas sem caroço, pão e grissinos, uma óptima manteiga de alho. Entre as saladas, chamou-me a atenção de uma com pêra e parmigiano. Também tem a clássica caprese (tomate, mozarella, basílico) a 9,5€.

As pizzas, já testadas por duas vezes, rondam os 10-12 euros (porção individual generosa) e são do melhor que se encontra em Lisboa. A Tavola Calda tem mozarella, rúcula, pancetta e bresaola da Valtellina (uma espécie de paio de vaca), a Modena fiambre de culatello e provola fumada e a Toscana grana, cebilnhas doces e balsâmico (uma boa combinação). As pizzas podem ser comidas no restaurante ou encomendadas e levadas para casa.

Nas sobremesas há cremolatte, ao que nos foi explicado uma espécie de granizado, de vários sabores. O bolo de chocolate com gelado é muito bom.

Tavola Calda
Praça 25 de Abril, n.º 7 (junto à bomba da Cipol), Algés
Tel.: 21 411 54 66
Veredicto: recomendado. Belas pizzas. O serviço depende do empregado que se apanha
Refeição para 2 pessoas e meia, com jarro de 1/4 de vinho da casa e sobremesa: 39 euros
3,5 estrelas

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A escultura amaldiçoada

«Nem teve tempo de atirar uma pedrada, como era hábito, à miserável estátua de Périnet Leclerc, que havia entregue a Paris de Carlos VI aos ingleses, crime que a sua efígie, com a cara desfigurada pelas pedras e suja de lama, expiou ao longo de três séculos, nas esquinas da Rua de La Harpe com a Rua de Bussy, como num eterno pelourinho». 
Hugo, Nôtre-Dame de Paris, pág. 390

Este episódio recorda-nos a história dos Burgueses de Calais, tema de uma escultura de Rodin. Nesse caso, porém, os seis burgueses entregaram-se, com uma corda aos pescoço e as chaves da cidade, a Eduardo III, durante a Guerra dos Cem Anos, precisamente para que o Rei de Inglaterra poupasse os habitantes. A pedido da Rainha de Inglaterra, acabaram por não ser executados.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Decepção e optimismo

Era um hotel tão ruim, tão ruim, mas tão ruim, que o lugar onde os hóspedes se registavam e recebiam as chaves dos quartos se chamava Decepção.

Era um barco tão mau, tão mau, tão mau, que lhe chamaram Optimist. Só uma pessoa muito optimista se atrevia a navegar nele...

sexta-feira, 12 de abril de 2013

quarta-feira, 10 de abril de 2013

a primeira fotografia (para o blogue)

Eu e a fotografia

No dia em que decidi que a fotografia se tornaria o meu novo hóbi de eleição fiz uma viagem, com partida do Algarve e chegada a Estremoz. Por alguma razão disse - e isto é a pura verdade, há uma testemunha - que nesse dia iríamos ver uma raposa. Avistar uma raposa por aquelas bandas é um privilégio raro, que terá acontecido três ou quatro ocasiões em vinte anos de visitas regulares.

As hipóteses eram residuais, mas aconteceu. Não só vimos uma raposa - tal como eu havia, pode-se dizer, profetizado - como ela ficou ao lado do carro durante uns poucos de minutos (geralmente desapareciam numa questão de poucos segundos).

Dado o meu novo hóbi e a minha profecia, eu ia com a máquina fotográfica pronta (como a viagem foi longa, passei o final sentado no banco do passageiro). Mas bem que carregava no botão para disparar o obturador - nada. Tentei em vários modos - automático, sem flash, prioridade abertura, retrato nocturno... -, mas, por causa da falta de luz, não se ouvia o bip que indica que a lente está focada e pronta a fotografar.

Finalmente decidi passar para focagem manual. 'Antes desfocada que nada', pensei. Entretanto, a condutora tentava orientar os faróis em direcção à raposa - com algum sucesso, por sinal. O animal por ali ficou uns dois minutos à volta do carro, a farejar.

Quando finalmente consegui que a máquina fotografasse, escusado será dizer - a raposa já não estava lá.

A única prova com que fiquei dessa profecia foi pois uma imagem de ervas secas à beira da estrada - isto aconteceu nas férias do Verão - iluminadas pelos faróis do carro e, mais escuro, um arbusto, por detrás do qual a raposa desapareceu.

De ora em diante o Comilão postará neste blogue algumas fotografias por ele tiradas com a sua nova máquina, uma Nikon D5100. Espero que os meus queridos fãs, seguidores, admiradores ou simples visitantes apreciem.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Restaurante Vivaldi, Bruges

O hotel Leonardo fica nas imediações de Bruges, numa zona arborizada a 3 ou 4 km do centro histórico. É ideal para grupos grandes, tipo escolas. Conseguimos fazer uma reserva a um super-preço. Talvez fosse por a estrada para lá estar cortada, mesmo junto à meta, e obrigar a um desvio de 20 minutos - isto se sequer se conseguisse dar com o sítio. Outra hipótese que se colocou para o preço foi uma certa decadência: no lugar do mini-bar só havia isso mesmo, o lugar; e debaixo da cama encontrei um biscoito para cão já meio comido.

Por falar em comida: questionado sobre um restaurante para jantar no centro de Bruges, o empregado do hotel sugeriu-nos qualquer um na Wijngaardstraat. Optámos pelo Vivaldi, que nos pareceu ter um ambiente simpático e descontraído, que a presença de dois bebés não perturbaria demasiado.

Mandámos vir pão de alho (com falta de sabor e excesso de manteiga), umas gambas tipo al ajillo (não a nadar, mas verdadeiramente afogadas num molho insípido), des moules au vin blanc (decididamente o Comilão só aprecia os mexilhões de vinagrete, e um ou dois, não aquelas quantidades gargantuescas) e um coelho guisado - normal.

Nada houve que se destacasse - fosse pela positiva, fosse pela negativa, o que não abona muito a favor do local. Mas podia ter sido pior.

Castro Caldas e o cérebro humano

Lê-se em dois ou três dias este Uma Visita Politicamente Incorrecta ao Cérebro Humano, do neurologista Alexandre Castro Caldas. O título não é 100% rigoroso: Castro Caldas mostra-se descontraído na forma como apresenta o tema, em dez capítulos com títulos sugestivos; quanto a ser politicamente incorrecto, penso que nem sempre o é, revelando alguns preconceitos sobretudo nos capítulos dedicados às diferenças entre homens e mulheres (com uma argumentação do tipo 'são diferentes, mas isso não quer dizer que os homens sejam melhores') e no das experiências de quase morte, onde tenta a todo o transe arranjar explicações que encaixem no saber científico actual para justificar fenómenos que se calhar são isso mesmo - inexplicáveis.

Dito isto, deve reconhecer-se que se trata de um livro que se lê com prazer e onde se aprende factos interessantes - não apenas sobre o nosso cérebro. Como este: «As baleias e os golfinhos não podem dormir com o cérebro todo ao mesmo tempo porque corriam o risco de se afogar. Assim, dormem alternadamente com cada metade do cérebro para poderem vir à superfície respirar» (pág.22)

«A primeira reflexão que é necessário fazer [...] é a do constrangimento económico da sua função. O cérebro é totalmente dependente do resto do corpo para sobreviver, não tem qualquer reserva energética e, por isso, tem de receber tudo a partir do metabolismo do corpo». Por sua vez, «é o cérebro [...] que faz com que o corpo se disponha a desencadear os processos naturais para o corpo o alimentar»  (pág. 36)

Nas págs. 76-77 há uma informação preciosa para a mulher do Comilão:
«As lesões no hemisfério direito têm uma grande probabilidade de provocar um sinal clínico muito perturbador, a chamada inatenção para o hemiespaço esquerdo. Estes doentes deixam de dar atenção a tudo o que se passa do lado esquerdo do espaço. Em geral, têm tendência para ter os olhos e a cabeça rodados para a direita. [...] A inatenção para o lado esquerdo do espaço inclui também a inatenção para o lado esquerdo do corpo. Os doentes com esta perturbação deixam de saber que existe lado esquerdo do corpo. Não só não utilizam os membros desse lado, como não reconhecem que neles existem problemas e ao negá-los tentam andar, caindo naturalmente sem compreender porquê» (sublinhado meu)

Alexandre Castro Caldas
Uma Visita Politicamente Incorrecta ao Cérebro Humano
Guerra & Paz
142 págs.
3 estrelas
(emprestado por RN)

quarta-feira, 20 de março de 2013

Uma oportunidade desperdiçada: Henri Pirenne, As cidades da Idade Média

Toda a gente sabe que o Comilão é um grande apreciador de livros sobre a história das cidades. Por isso adquiriu o clássico de Mumford A Cidade na História; também de Mumford The Culture of Cities; livros sobre Veneza, Paris, Lisboa e Nova Iorque; La Ville en France au Moyen Âge; ou ainda o volumoso London - The Biography, de Peter Ackroyd.

Em tempos já havia lido do historiador Henri Pirenne um ensaio que me havia chamado a atenção, com o sugestivo título Maomé e Carlos Magno. A tese central é que sem as invasões muçulmanas não teria sido possível o fenómeno das dinastias merovíngia, carolíngia e capetiana, pois foram elas que empurraram o ocidente para norte e assim mudaram o centro de gravidade do Mediterrâneo para os territórios da Europa do Norte.
Esse livro tem um interessante prefácio assinado pelo filho do historiador, onde conta como, já final da vida via o pai ansioso por não conseguir que a velocidade da escrita acompanhasse a do pensamento. O aperitivo, pois, é bom e a ideia central também, pelo que me custa mais dizer que este livro foi uma decepção. Mas infelizmente essa é a verdade.

O mesmo aconteceu com As Cidades da Idade Média. O título parece apontar para uma narrativa concretizada com exemplos, o que só muito raramente acontece. Estranho é que num livrinho desta natureza (pertence à colecção Que Sais-je? das PUF) se discutam fontes, rebatam teses e, pior do que tudo, haja citações em latim não traduzidas!, quando o que se pretendia era uma súmula. Depois, há uma questão de desequilíbrio: quase metade do livro é dedicado ao fim do Império Romano e Baixa Idade Média, o período que o autor melhor domina.

O primeiro sublinhado meu só aparece na pág. 49:
«Sabe-se que os bandos de normandos varegues,quer dizer, de escandinavosoriginários da Suécia, estabeleceram, nodecurso do século IX, o seu domínio sobre os eslavos da bacia do Dnieper. Estes conquistadores,que os vencidos designaram sob o nome de Russos, construíram recintos fortificados,chamados gorodsem língua eslava, onde se instalaram àvolta dos seus prínciopes e das imagensdos seus deuses. As mais antigas cidades russas devem a sua origem a estes campos entrincheirados.

naspágs.75-76 háumareferênciainteressante a constantinopla, mas em geral as considerações são muito gerais e destituídas de pormenores. o que diferenciava uma cidade medieval italiana de uma cidade francesa ou flamenga? como eram os edifícios? de que materiais eram feitos? que atracções, que festas havia nas cidades? como eram os interiores das casas? o que comiam os seus habitantes? nada disso aparece respondido (Gente da Idade Média, que é objecto de outro post), preferindo o autor falar da aplicação das taxas ou elogiar a complexidade do direito,mas sem dar exemplos vivos. Às catedrais são dedicadas cinco linhas! isso diz tudo...

Henri Pirenne
As Cidades da Idade Média
Europa-América, Colecção Saber
(adquirido na papelaria Cordeiro e Ramos)
1,5 estrela (custa-me dar uma nota tão baixa, mas é o que penso)

quinta-feira, 7 de março de 2013

Dylan Thomas na América. Um tesouro perdido... e encontrado?

Encontrei há dias na Fnac, e adquiri pela módica quantia de €5,04 (cinco euros e quatro cêntimos) esta biografia de Dylan Thomas. O Guia American Express de Nova Iorque menciona que Thomas morreu após ter bebido 18 uísques no White Horse Tavern, um bar na Village onde o Comilão já passou. Quanto ao exemplar recém-adquirido, pertence à colecção 'Prion Lost Treasures'. Será este Dylan Thomas in America um tesouro? A avaliar pelo texto de apresentação na contracapa, sim. (tradução minha):

«Quando o grande poeta galês chegou a Nova Iorque, em 1950, para um programa de leituras de poesia através do país, a América não sabia o que acabava de a atingir. Angelical, demoníaco, imoral, sedutor, incerto dos seus recursos interiores para produzir mais poesia e perseguido por uma ânsia para a autodestruição, dado a maratonas alcoólicas, não era o que o sóbrio mundo dos académicos americanos esperava. Os estudantes adoravam-no, embora nos primeiros dois ou três encontros com eles as raparigas tivessem de ser postas a salvo. E fez amizades instantâneas com inúmeros escritores americanos, jornalistas e frequentadores de bares. O patrono e guia de Thomas era o jovem poeta John Malcom Brinnin, que assistiu horrorizado, totalmente assombrado pelo charme e génio do poeta, à lenta descida de Thomas ao inferno. Brinnin também foi a Londres e ao País de Gales e viu-o no seu elemento - preso num casamento apaixonado mais difícil com Caitlin e perseguido por preocupações monetárias».

John Malcom Brinnin
Dylan Thomas in America
Prion
251 págs., €5,04

quarta-feira, 6 de março de 2013

Bill Buford, A ferver


A Ferver foi um dos livros que o Comilão recebeu no último Natal. Conta a odisseia do autor não apenas na cozinha do Babbo, o mais prestigiado restaurante italiano de Nova Iorque, como na Toscana, para onde Buford foi em busca da essência da cozinha italiana. O livro tem que se lhe diga: está escrito com liberdade, humor e talento (por vezes quase virtuosismo) e proporciona um prazer genuíno e intenso, como uma boa refeição - mas mais duradouro. Buford era editor da revista New Yorker quando começou esta aventura, que teve na origem a redacção de um perfil do chef Mario Batali (isso aparece contado na pág. 186). Acabou por despedir-se do emprego para passar um ano a compreender o funcionamento da cozinha de um grande restaurante, trabalhando lá como voluntário. Depois disso foi para uma aldeia nos confins da Toscana para colaborar com Dario Cecchini, o mais célebre talhante vivo. A história de Marco Pierre White é um dos pontos altos. Começa na pág. 123.

«Quando alguém pediu batatas fritas ficou tão ofendido que foi ele mesmo prepará-las e cobrou 500 dólares. 'Eu costumava ficar doido de todo'. Atirava com coisas; partia coisas; insatisfeito com um prato de queijo, atirou-o contra a parede, onde ficou agarrado e foi escorregando à medida que a noite avançava, deixando um rasto de gordurento de Camembert. Quando o chef principal caiu e partiu uma perna, Marco atirou-se a ele: 'Como te atreves? Se fosses um cabrão de um cavalo eu dava-te um tiro'» pág. 128
ovos 135
como fritar batatas 136

«Para Mario, Harrison era o Homero, o Miguel Ângelo, o Lamborghini, o Willie Mays, o Secretariat, o Jimi Hendrix dos intelectuais da comida: 'um conhecedor, um caçador, um bom garfo, um farejador persistente, um filho da mãe falador e um copofónico que não tem medo de se entusiasmar com o tipo de noz que uma determinada perdiz deve ter comido de manhã para saber tão bem ao almoço'. Mais modestamente, Harrison descrevia Batali como uma alma gémea. [...]

A primeira magnum de vinho branco chegou e Mario relembrou Harrison de que tinham bebido 28 garrafas da última vez que se tinham encontrado» 178-179

«O talho dele [Dario] não era um simples talho mas um museu da cozinha toscana: carne crua e cozinhada, peças de carne das vacas de Chianti juntamente com vários tipos de ragù e molhos e porcos curados - uma universidade da zona» 278

«A cada passagem a carne chiava e o vapor envolvia o meu rosto. Estava cheio de calor: a rotina da camisa molhada, e o suor a escorrer-me pelo rosto, pescoço e braços. Veio-me ao espírito Marco Pierre White ('Todos os rapazes crescidinhos temperam a comida com o seu suor - consegue-se sentir o gosto') e a minha dúvida era se o suor seria realmente o tempero secreto da cozinha pois não havia dúvidas de que era para onde o meu caía, embora se convertesse logo em vapor, no impacto.»

«'De leve' dizia o Maestro, espreitando por cima do meu ombro. 'A faca tem de estar livre na tua mão, nunca agarrada com força, de forma a que ela consiga descobrir as linhas da carne.' Ele tinha-se tornado num mestre Zen das lâminas bem aguçadas. 'Com elegância' dizia. 'A faca deve estar solta. Ela é que faz o trabalho, não tu. A tua mão desapareceu dentro da faca.'

'Certo!' dizia eu e repetia a instrução: 'A minha mão desapareceu.' Depois pensava: isto não ajuda nada, a minha mãos não desapareceu para lado algum. Eu suava, porque suava sempre que o Maestro se punha assim tão perto, e além disso sofria com uma dor aguda que irradiava fortíssima do fundo das costas, pela tensão, embora estivesse determinado em ocultar à minha mão toda aquela sensação terrível, pois sabia que não a ajudaria em nada. 'Descontrai-te, ó mão' dizia eu , persuadindo-a com brandura. 'Lembra-te que hoje é o teu dia de folga. Não és tu que trabalhas. Essa coisa aguçada é que faz tudo.'» 346

Bill Buford
A ferver - aventuras e desventuras de um cozinheiro amador
Sextante
411 páginas - 4 estrelas
(embora seja uma leitura fascinante e muito divertida, tem dois capítulos mais chatos sobre a polenta e sobre quando o ovo foi introduzido na receita da pasta)

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

peixe frito

Embora não tenha conseguido, como é seu apanágio, ir à praça no sábado de manhã, o Comilão encontrou boas ovas e carapauzinhos na peixaria do Pingo Doce. E assim preparou uma espécie de fritada mista que acompanhou muito bem com um arrozinho de tomate feito pela mulher do Comilão. (as ovas e os carapaus ficaram no frigorífico ao longo do dia a absorver o sal, que ficou no ponto) Foi pena os carapauzinhos terem pouco que comer e não estarem bem arranjados. Tirando isso, o conjunto estava muito bom (o Comilão é louco por ovas fritas).

Três conselhos apenas para a preparação deste prato:
1. aquecer bem o óleo antes de colocar o peixe
2. não ter pressa em tirar as ovas, deixá-las fritar bem
3. ter o exaustor ligado no máximo

Costeletas de porco preto

O Comilão andava com desejos de fazer entrecosto frito mas a coisa não se proporcionou. Por uma feliz coincidência encontrou, isso sim, duas belas embalagens de costoletas de porco preta, ainda para mais com desconto. Foram preparadas com massa de pimentão, depois fritas em azeite com alho (entretanto retirado para não queimar), um pouco de sal grosso por cima (mas só um pouco), louro, depois cerveja, um pouquinho de vinho do porto, um resto de vinho branco, e ali ficaram longamente a caramelizar até ganharem uma espécie de crosta e uma cor intensa entre o laranja e o castanho.

Estavam formidáveis, ligeiramente adocicadas, como se pretendia, e acompanharam com arroz branco, feijão encarnado (que ligou muito bem) e salada.

4 estrelas

Friedrich Engels, The Condition of the Working Class in England

Há perto de vinte anos que o Comilão tinha o desejo de ler este livro, desde que tomou dele conhecimento durante uma aula de História na escola secundária. Pois bem, há tempos encontrou-o na Almedina, no Saldanha e, embora não fosse o momento mais oportuno para tal, adquiriu-o pelo preço de €12,85.

Engels foi para Inglaterra em 1842, enviado pelo seu pai - «um tirno» - para aprender o negócio num moinho de que o progenitor era proprietário. Foi via Paris, onde se encontrou com Marx, com quem iniciaria uma amizade e uma colaboração para o resto da vida, e chegou a Londres, que o terá impressionado deveras pela sua dimensão, em Novembro de 1842. «Ao longo de 21 meses tive a oportunidade de privar com o proletariado inglês, as suas aspirações, as suas alegrias e arrependimentos, de vê-lo de perto, a partir da observação e contactos pessoais, e ao mesmo tempo pude complementar as minhas observações com o recurso às fontes autênticas. O que vi, ouvi e li foi trabalhado no presente livro». Livro escrito em finais de 1844 e início de 1845no seu regresso à Alemanhan (quando tinha apenas 24 anos), e publicado em Leipzig. Em Manchester, Engels explorou os bairros operários, verdadeiros labirintos miseráveis e insalubres, provavelmente com a orientação de um guia, talvez a irlandesa Mary Burns, que viria a tornar-se sua mulher. Nesta páginas, o autor descreve as condições duríssimas em que viviam os trabalhadores das manufacturas inglesas, as suas casas sem esgotos nem casas de banho (eram imundas instalações comuns), sem cama (apenas um monte de palha), húmidas e mal ventiladas. Nos pátios, onde o lixo e todo o tipo de detritos se acumulavam, o cheiro era particularmente intolerável. Uma família inteira - às vezes até mais - podia viver num quarto, que fazia também de sala de estar e de cozinha, não raro em caves ou sótãos saturados de humidade. Glasgow (págs. 76-77) era das cidades mais sujas e os irlandeses conseguiam tolerar as piores condições, baixando assim o nível de vida dos ingleses (saxões), graças à sua mão-de-obra barata. Estas famílias nada possuíam além dos trapos que traziam vestidos (e com os quais dormiam), a sua alimentação às vezes resumia-se a batatas. A promiscuidade sexual e o álcool eram os seus únicos escapes. Estas condições sub-humanas e a concentração de pessoas nas cidades faziam destas focos de doença. As taxas de mortalidade infantil (contemplando crianças até aos cinco anos) eram assustadoras, atingindo os 50% em Leeds! A exploração das crianças também é abordada, assim como as deformações provocadas por certas tarefas: «Um dos grandes industriais de Manchester, líder da oposição contra os trabalhadores [...] disse em certa ocasião que se as coisas continuassem com o rumo que levam hoje, osoperadores do Lancashire em breve se tornariam uma raça de pigmeus», pág. 178

Também há páginas arrepiantes sobre as casas onde eram recolhidos os mendigos (284-287).

«A falta de higiene, que não é tão nociva no campo, e que é a segunda natureza do irlandês, torna-se assustadora e seriamente perigosa através da sua concentração nas grandes cidades. O Milesiano (irlandês) deposita o lixo e sujeira à porta de sua casa, como estava habituado a fazer na sua terra, e assim acumula poças e montes de detritos que desfiguram os bairros dos operários e envenenam o ar. Constroi uma pocilga contra a parede de casa como fazia na sua terra e, caso o proíbam de fazer isso, deixa o porco dormir no quarto consigo. Este método novo e anti-natural de criar gado nas cidades é de origem irlandesa. O irlandês ama o seu porco como o árabe ama o seu cavalo, com a diferença de que o vende quando está gordo o suficiente para se matar. De outro modo, ele come e dorme com o porco, os seus filhos brincam com ele, cavalgam-no, rebolam-se na terra com ele, como qualquer um pode ver repetido um milhar de vezes em Inglaterra». pág. 123

Friedrich Engels
The Condition of the Working Class in England
Penguin Classics
294 págs.
3-3,5 estrelas
veredicto: um testemunho impressionante das consequências da revolução industrial na Inglaterra de meados do século XIX. partes um bocado chatas e revela por vezes uma visão algo limitada por preconceitos ideológicos sobretudo anti-burgueses.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Ed Koch (1926-2013)

Morreu na sexta-feira, 1.II.2013, Ed Koch, o mayor de Nova Iorque a quem Paul Simon agradece durante o célebre discurso no concerto de Central Park. Exerceu o cargo entre 1978 e 1989, conseguindo resgatar a cidade a uma das suas fases mais negras e difíceis, tornando-a novamente um portento cultural e financeiro. Liderou o renascimento da cidade após a crise económica da década de 70, mas durante os seus três mandatos teve de enfrentar tensões raciais, currupção entre os seus aliados, a epidemia da sida, a proliferação de sem-abrigo e crime nas ruas, que depois Giulianni conseguiria dominar. Não queria abandonar Manhattan e por isso, vendo o fim da vida aproximar-se, adquiriu um talhão no único cemitério onde havia espaço disponível, o de Trinity Church. Para Bloomberg «não havia ninguém que tão bem incorporasse o espírito da cidade de Nova Iorque como ele». Bill Clinton, em representação do Presidente Obama, disse: «Tinha um grande cérebro, mas o coração dele era ainda maior».
Koch é recordado pela sua irreverência, energia e pelo hábito de andar pela cidade a perguntar aos transeuntes 'How'm I doing?' (Que tal me estou a sair?'), revelando-se em geral com demasiada pressa para esperar pela resposta.

Fotografia tirada a 30 de Janeiro de 1975: o arquitecto Philip Johnson, Jacqueline Kennedy, Besse Myerson e Ed Koch após uma conferência de imprensa para salvar o Grand Central Terminal (ao fundo)

O velho Isaías

Há anos que já não vou à Adega do Isaías, em Estremoz. Da última vez que lá fui havia uma fotografia do seu filho, o Zé Marcos, na parede atrás do balcão onde costumava servir-nos abafadinhos nuns copos minúsculos (o Sr. Isaías usava metáforas taurinas, um 'ferro curto', como ele dizia). E o próprio Isaías já tinha falecido. Recordo-me bem de o ver no assador, com os olhos semi-cerrados por causa do fumo, a estender uma peça de entrecosto sobre a grelha como um vendedor de tapetes estende um belo exemplar perante um bom cliente.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

James Wood, A mecânica da ficção

O Comilão tinha alguma curiosidade acerca deste livro por dois motivos: o primeiro, um elogio ouvido da boca de um amigo; o segundo, estritamente pessoal, o facto de o nome do autor ser muito parecido com o de um actor - 'o asqueroso' - bastante apreciado pelo Comilão. O exemplar foi adquirido na Bertrand do CC do Campo Pequeno, enquanto trocava um presente de Natal. Comecemos pela aparência: bom tamanho, capa com aquele toque baço que a Quetzal consegue dar aos seus livros. A tradução é, como a edição, cuidada, o que se pode ver logo à partida no título: o original chama-se How Fiction Works. A Mecânica da Ficção é pois uma tradução não literal mas adequada, que revela uma certa liberdade (e engenho) por parte do tradutor.

Vamos ao miolo. James Wood dá um grande relevo àquilo a que ele chama 'estilo indirecto livre', que se pode resumir aos momentos em que o narrador exprime, de forma mais ou menos velada, o estado de espírito das personagens. Há também uma grande ênfase - eu diria exagerada e de cariz modernista - na consciência do escritor (não por acaso a segunda parte chama-se, algo pomposamente, 'Uma história da consciência') e na distinção entre autor e narrador. Wood extasia-se quando o narrador fala sobre si próprio e revela ao leitor algo sobre as técnicas da escrita (como o pintor que já não tenta disfarçar a pincelada, ou tornar o seu quadro uma espécie de janela transparente, mas antes aplica a tinta de modo a ver-se que é tinta) ou mostra que também pode ter uma visão parcial da história. E valoriza também bastante a ironia.

Posto isto, deve dizer-se que se trata de um livro que se lê com prazer. A divisão em mini-capítulos (?) confere um bom ritmo à leitura e confere uma agradável sensação de se estar a progredir. O autor gosta de exibir os seus conhecimentos literários - quer no tom, quer nas referências, transparece uma ponta de vaidade.

Wood recompensa-nos com belas passagens.
«No ensaio de Orwell 'A Hanging', o escritor observa um condenado à morte, a caminho da forca, desviar-se para evitar uma poça de água. Para Orwell, isto representa precisamente o mistério da vida que está prestes a ser terminada: mesmo quando não há nenhum motivo racional para isso, o homem ainda pensa em manter os sapatos limpos. É um acto irrelevante (e uma maravilhosa proeza de observação por parte de Orwell)».

Depois há informações interessantes como a de que Nabokov gostava de controlar as suas personagens como se fossem peças de xadrez ou de que Flaubert gostava de ler o que tinha escrito em voz alta, para avaliar o ritmo.

James Wood
A Mecânica da Ficção
Quetzal
280 págs., €15
3-3,5 estrelas (uma boa leitura)

p.s. depois de algum tempo tentado a comprá-lo, o Comilão adquiriu a primeira edição de The Broken Estate (em português A Herança Perdida), do mesmo autor.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Travessa do Fado

No passado fim-de-semana o sr. Comilão e a família da sua mulher celebraram um aniversário na Travessa do Fado, o restaurante do Museu do Fado, no tipicíssimo Largo do Chafariz de Dentro. Em tempos o Comilão foi jantar à casa-mãe, a famosa Travessa, na Madragoa, uma refeição em que comeu costeletas de borrego (nada de transcendente). Desta mais recente refeição comemorativa guarda, pelo contrário, excelentes memórias. Para começar, o pormenor auspicioso de uma magnífica lareira a arder no exterior, dentro de uma selha, e a incensar o ambiente exterior. Lá dentro, decoração bonita num edifício moderno - e de organização algo labiríntica...
Vamos à comida: a palavra de ordem na Travessa do Fado é partilhar. Partilhar petiscos.
O que veio para a mesa: peixinhos da horta (bons), favinhas baby com enchidos (muito saborosas), tomatada (excelente), pastel de massa tenra (bom), lulas recheadas (boas), empadas de galo com salada (não provei) e ainda polvo grelhado com azeite e alho (tenro, mas algo desenxabido). Antes disso, o couvert, com pãozinho às fatias, tapenade de azeitonas (viciante) e manteiga de alho (magnífica). A fechar, duas sobremesas: cheesecake de frutos vermelhos e bolo de chocolate, ambos deliciosos. Embora em geral o serviço fosse muito simpático e eficiente (uma empregada e um empregado estrangeiro, talvez italiano, de grandes bigodes, tão cómico quanto encantador), o intervalo entre o fim do 'prato principal' (se assim se pode falar numa refeição de entradinhas) e a chegada da sobremesa foi incompreensivelmente prolongado. Uma nota para a apresentação cuidada dos pratos, em tachinhos e travessas bonitas.

Travessa do Fado
Largo do Chafariz de Dentro, 1
refeição para cinco pessoas: 73€
veredicto: 4 estrelas. Não estava tudo de comer e chorar por mais, mas quase

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Aquisições de 2012

O Comilão tomou no início de 2012 a decisão de não comprar mais livros. Uma decisão que nem sempre foi cumprida. Aqui fica a lista dos incumprimentos:

Edgar Allen Poe, Poesias Completas (Tinta da China)
Anthony Beevor, Berlin - The Downfall
Susan Sontag, Reborn (Diaries)
The Art and Architecture of Russia (The Pelican History of Art)
The Art and Architecture of Japan (The Pelican History of Art)
The Culture of Cities, Lewis Mumford
A Ilha no Centro do Mundo
Salman Rushdie, Joseph Anton
A Embaixada do Marquês de Fontes ao Papa Clemente XI
Klimt Persönlich
Viena no Tempo de Mozart e Schubert
A Casa de Papel
Conversas com Woody Allen
Bill Bufford, A Ferver
Alexandre Herculano, História de Portugal, volume II
Charles Bukowsky, Mulheres
Henri Pirenne, As cidades da Idade Média
Joshua Benoliel, Fotobiografia
Amadeo Souza-Cardoso, Fotobiografia
Tony Judt, O Chalet da Memória
Con Coughlin, Khomeini's Ghost
Bin Laden
W.G. Sebald, Do Natural
Alexandre Herculano, HIstória de Portugal, vol. II
Fernando Pessoa, Ibéria

Astrolábio

Não me recordo de já ter falado aqui do Astrolábio, um típico restaurante de peixe em Paço de Arcos. Pois bem, vou reparar essa falta agora mesmo.
Dado o Peixe na Linha estar fechado, o Comilão e a sua família apostaram no Astrolábio para o almoço de sábado. E fizeram-no em boa hora, pois o empregado estava a preparar-se para fechar as portas quando viu o nosso carro a estacionar. Para se chegar lá, entra-se para Paço de Arcos (junto ao palácio) e vira-se na primeira à esquerda, uma rua estreitinha, que vai dar a um larguinho, onde fica o nosso restaurante. Serviço simpático e profissional, 'demasiado' atencioso por sermos os únicos clientes (o que tornou tudo mais rápido). Couvert de pão em fatias bem fininhas com manteiga e belas azeitonas com alho e orégãos. Entrada: amêijoas à Bulhão Pato, excelentes. Prato principal: duas douradas de mar (cerca de €40/kg) assadas no carvão para 4/5 pessoas. É pena não ter fotografado a magnífica travessa comprida onde o peixe é servido, uma das assinaturas da casa. Acompanhamento: hortaliças salteadas, batata cozida, batatinhas novas cozidas com pele, cenoura, bróculos - uma panóplia de legumes. Para o peixe vem ainda uma molheira com azeite quente com alhinho picado e salsa. Bebida: Duas Quintas (Douro) branco, que caiu que nem mel. Noutras ocasiões o Comilão tem optado pelo robalo. O peixe é sempre fresquíssimo e assado no ponto. Sobremesa: tarte de maracujá (uma espécie de cheesecake com cobertura de maracujá, muito bom). O arroz doce também foi muito elogiado por um dos comensais.

Veredicto: uma refeição magnífica a um preço razoável (o Comilão espreitou a conta, embora não tenha pago. Total: €107). O Astrolábio é uma aposta segura para os apreciadores de peixe. Pena não ter mais clientela, embora isso (como foi dito) até tenha tido as suas vantagens.