terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O Fundo da Baía


O Comilão acabou de ler, esta semana, O Fundo da Baía, de Joseph Mitchell (a quem dedicou um post anterior). É um livro delicioso, ainda que, e serve isto também para remar contra o coro de elogios, algumas das histórias tenham informação excessivamente detalhada sobre as zonas ribeirinhas do Hudson (Kill van Kull, Prince's Bay, Stonington e por aí fora). Para quem não domina a geografia da região, que é o caso de qualquer leitor português, em princípio, torna-se difícil e cansativo orientar-se em águas que não conhece. Seria como falar de Cacilhas, Ginjal, Barreiro, Peniche, etc. a um norte-americano. Fora isso, merece todos os elogios que lhe foram feitos e mais alguns. O texto sobre a peste e os ratos, seus hábitos, riscos e façanhas, merece um destaque especial. 4 estrelas

bons filmes

Bons filmes que o Comilão tem visto ultimamente:

Três Reis, de David O. Russell
Guerra do Iraque. Um grupo de oficiais norte-americanos encontra por acaso os mapas dos bunkers onde se presume que Saddam escondia o ouro. Não olham a meios para atingir o seu objectivo, mas quando são capturados pelos fiéis de Saddam vêem-se obrigados a negociar. Serão estes soldados tão destituídos de princípios como parecem? Misto de realismo (tipo reportagem de guerra) e cómico absurdo. 4 estrelas

Tropa de Elite, de José Padilha
Fita sobre o BOPE, o esquadrão de polícias incorruptíveis encarregado de pôr ordem nas favelas. Tem um início brutal e até ao fim nunca perde o gás. 4,5 estrelas

Shutter Island, de Martin Scorsese
Um detective vai para uma ilha onde está instalado um hospital psiquiátrico. Depara-se com um estranho médico que parece submeter os pacientes a tortura. Espécie de 'thriller lunático' sobre os fantasmas e labirintos tortuosos da mente humana. 3,5 estrelas

Cemetery Junction, de Ricky Gervais e Stephen Merchant
Filme sobre os dramas de três amigos adolescentes numa terriola britânica nos anos 70. Um quer ter um emprego estável e casar, o outro é um brigão sem remédio e revoltado com o pai, um alcoólico sem objectivos, o terceiro é gordo e barraqueiro. Bem esgalhado. 3,5-4 estrelas

Shatered Glass - Verdade ou Mentira
História verídica. Um jovem jornalista do New Republic consegue sempre histórias mais deliciosas e picantes do que os colegas. Finge-se humilde e atencioso, dá graxa aos chefes, e assim vai construindo um sucesso precoce. Até que surgem dúvidas sobre a veracidade dos seus artigos e ele começa a revelar uma faceta mais negra. 3 estrelas

Homens que matam cabras com o olhar
Mais um fime sobre a guerra em que o realizador consegue tornar um lado cómico e absurdo (bem patente no título) em algo credível. Um grupo de militares treinados para se tornarem especialistas em telepatia (ESP, extra sensorial perception, na expressão de Aldous Huxley) reúne-se em torno de um guru. Têm regras e privilégios diferentes dos outros militares, mas conseguirão manter os princípios justos e o espírito algo hippie que os animam?
3,5 estrelas

Abre tus ojos, de Alejandro Aménabar
Um playboy rico e jovem tem um acidente de automóvel provocado pela namorada. Depois de muitas tentativas de reconstituir a sua cara desfigurada, que o está a traumatizar, consegue recuperar as feições originais. Mas vive na permanente incerteza de se aquilo que está a viver é a realidade ou um sonho encomendado. 3,5 estrelas

O Escritor Fantasma, de Roman Polanski
Um jornalista [Ewan McGregor] é recrutado pelo seu agente literário para redigir as memórias de um político retirado. Mas para isso tem de ficar aprisionado na propriedade do rico ex-primeiro-ministro. À medida que investiga o desaparecimento do seu antecessor começa a ver a sua vida ameaçada. 3 estrelas

Juno, de Jason Reitman
Uma história simples que, à medida que se vai desenvolvendo, vai ganhando em subtileza e complexidade. Personagens muito bem construídas, com realismo e densidade emocional. E ainda uma boa dose daquele humor que nos enche a alma. 4,5 estrelas

Comer na Escócia

Na noite de comemoração do aniversário do casamento do casal Comilão, o Comilão e sua mulher foram jantar ao bistro do Bosville Hotel, em Portree, capital da ilha de Skye. A uma mesa de distância estava o sofisticadíssimo Chandlery restaurant (fine dining), recomendado pelo Guia Michelin. Para entrada, lagostins ao vapor: tinham pouco para comer, como é costume nestes crustáceos, mas o que tinham era fantástico. Contudo, o mais fantástico veio depois: um T-Bone steak (22 oz) com manteiga de alho, talvez o melhor bife que o Comilão já comeu na vida. Verdadeiramente empolgante. E o preço nem foi exagerado: cerca de 50 libras pelas duas refeições. Ao lado do casal Comilão estava estava um homem gordíssimo, provavelmente americano, com a sua mulher bem arranjada. Parecia feliz (ver conto de Raymond Carver 'Um homem muito gordo') 4,5 estrelas

Outras refeições:
O primeiro almoço foi no Jimmy Chung's, um buffet chinês na Waverly Bridge. Muita escolha, boa comida, ambiente simpático e preço em conta. Uma boa escolha para viajantes.

Crannog Seafood Restaurant (recomendado pelo Guia Michelin) - mexilhões com molho de cebola e natas (à primeira garfada, a mulher do Comilão disse que sabiam a maré vazia...), bolinhos de peixe e robalo grelhado com ervas. Óptimo ambiente, bonita casa em madeira junto ao lago, comida boa, mas não comparável com a dos bons restaurantes do género em Portugal. 3 estrelas

Pub em Kylesku: patas de caranguejo panadas (muito boas), sopa de peixe (ok), batatas recheadas com maionese de alho (bom), salsicha tipo italiana e pão de alho (menos bom). 3 estrelas

Pub perto de Blair Castle: tábua de entrecosto com molho barbecue. Excelente. O café, que foi servido numa cafeteira, inspirou logo um pequeno ensaio ao Comilão 3 estrelas

Cawdor Tavern (antiga oficina de carpintaria do castelo): um pão que era uma coisa do outro mundo (os Comilões pediram mais um cestinho e a empregada pareceu não achar muita graça). O sunday roast tinha acabado de acabar, pelo que o Comilão teve de se contentar com um vulgar fish and chips. Bom ambiente, algo luxuoso até, mas o serviço deixa a desejar. 2,5-3 estrelas

Riva (Inverness): da primeira vez o Comilão e sua família foram à pizzeria que há no andar de cima. Boas pizzas com um senão, o excesso de pimenta que dominava o paladar. Da segunda vez experimentámos o requintado restaurante de baixo. Bom ambiente. Para entrada, um trio de crostini (razoável). Para prato, uma pasta com salmão e uma espécie de carré de borrego com risotto (talvez a carne estivesse algo salgada). Serviço entre o desleixado e o impertinente. 2,5 estrelas (algo decepcionante para o que parecia prometer)

Também em Inverness os Comilões não desperdiçaram a oportunidade de revisitar a velha Subway (infelizmente extinta em Portugal) e de comer uma sandes com tudo aquilo a que tiveram direito!

Merece aqui ainda uma referência ao almoço no TGI Friday's (Glasgow). Um óptimo, óptimo Jack Daniel's burger e ambiente sempre alegre, com direito a balão para as crianças. 4 estrelas! (só não está certo terem recusado a família do Comilão uns dias depois)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

ceia de Natal


Aqui fica uma imagem da ceia de Natal da família do Comilão. Lombos de bacalhau (congelados, Pingo Doce), ovo e legumes cozidos (grão, batata, bróculos, cenoura, cebola), cebola e alho picadinho. Faqueiro de prata. Copos de cristal. Azeite Risca Grande Antique. Só ele merecia um post próprio. Trata-se de um azeite virgem extra com produção limitada a 2 mil garrafas anuais, feito a partir das oliveiras mais antigas da propriedade, árvores que têm entre 200 e 500 anos. Foi comprado na Ex Libris Gourmet, uma lojinha muito bem arranjada e bem abastecida em Tavira (6 euros e qualquer coisa uma garrafa de 250 ml). Meia garrafa de vinho Duas Quintas. Sobremesa: crumble de banana com gelado de nata. Uma maravilha.

biblioteca pessoal

Corri seca e meca
dei cabo da coluna
e gastei uma fortuna
para ter esta biblioteca

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Café Buenos Aires


Para quem não pode ir à capital argentina, aqui fica uma sugestão mais em conta. Situa-se ali perto do Largo do Carmo, na Calçada Escadinhas do Duque. Podemos começar pelo ambiente: paredes de tons quentes, com cartazes e fotografias antigas e música que parece saída de uma velha grafonola. Mesas próximas umas das outras, mas apesar de tudo com alguma privacidade.

Couvert
: pão com pasta de azeitona. Para entrada o Comilão e sua mulher pediram uma salada de flores com morangos e queijo de cabra. A salada tem aspecto de sobremesa, pois é muito colorida e vem temperada por um emaranhado de fios de redução de balsâmico que imitam muito bem topping de chocolate. O queijo de cabra é delicioso e tudo liga às mil maravilhas. As flores não são apenas altamente comestíveis como agradavelmente doces. Em vez dos anunciados morangos apareceram framboesas, que não destoaram, embora os morangos provavelmente ligassem melhor. O paladar confirmou a impressão de que esta salada poderia servir de sobremesa.

A seguir veio o bife, ou melhor, meio bife (o inteiro é uma alarvidade). Tinha um problema: para bife médio-mal passado estava demasiado cozinhado e, por conseguinte, algo seco. (E mesmo o 'muito mal passado' não estava tão cru como seria expectável). Mas a carne vê-se que é saborosa e de qualidade. Não foi, contudo, aquele bife fenomenal de que o Comilão estava à espera. Acompanha com batatas caseiras às rodelas, cebola confitada e cenouras temperadas com alho e coentros.
O manjar foi regado por uma garrafa de Vertente (ou Vértice?) (Nieeport, Douro, ano 2008), que se revelou um óptimo vinho.

O café BA possui ainda uma esplanada que deve ser muito agradável nas noites de Verão. A casa de banho (mista) tem as paredes forradas de registos de contabilidade antigos, páginas de jornal e cartas de outros tempos. À frente do lavatório há uma lista das sobremesas: uma ideia engenhosa. O Comilão e sua mulher pediram um crumble de maçã com bola de gelado, que consideraram bom, mas não delicioso.

4 estrelas, segundo o rigoroso critério do Comilão
Preço: 70 euros (refeição para duas pessoas com entrada, dois pratos principais, garrafa de vinho, sobremesa e café)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Mar d'Areia, Ericeira

O Comilão foi com a sua mulher passar o último fim-de-semana à Ericeira. Para quem se queixa de que na Ericeira não se come bem, aqui fica uma sugestão: o Mar d'Areia. É um restaurante familiar, popular e relativamente modesto mesmo junto ao mercado (Rua Fonte do Cabo). Atenção: é melhor ir cedo (ou tarde, mas aí arriscamo-nos a que já não haja muita escolha) porque enche, mesmo quando a vila parece deserta.

Para começar, um pãozinho mesmo bom (de Mafra?) com manteiga. E, para quem quiser, queijo fresco. Depois, como entrada, o senhor mencionou umas pataniscas e o Comilão não se fez rogado. Deliciosas, leves, no ponto de fritura ideal. Melhor é difícil, se não impossível.
Depois veio um óptimo robalo para dois, escalado, grelhado no carvão por quem sabe e acompanhado por legumes cozidos. Fresquíssimo.

Sempre que come peixe grelhado, o Comilão lembra-se de uma passagem muito bonita das Memórias de Adriano, em que o próprio diz como aprecia a simplicidade de um peixe fresco grelhado só com uma pedra de sal.

Para finalizar, uma mousse de chocolate. 'É feita cá?', perguntou a mulher do Comilão. 'Aqui pela minha pessoa', respondeu a senhora com orgulho. Um orgulho justificado, diga-se, pois a mousse estava óptima. 'No Inverno fica assim rijinha', acrescentou a senhora. 'No Verão é mais difícil, às vezes é difícil ligar'.

E por quanto ficou este manjar imperial para duas pessoas? 31 €: um preço muito em conta, para não dizer 'uma pechincha', tendo em conta que o peixe fresco não é barato.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

O verdadeiro significado do verbo 'seleccionar'

Ao passarmos em Alcântara, o condutor do táxi afirma convicto:

- Isto durante semanas esteve p'ra aqui tudo embrulhado, mas entretanto eles já seleccionaram o problema.

Um mestre do ofício: Joseph Mitchell (1908-1996)


O Comilão acaba de adquirir O Fundo da Baía, um livro de crónicas de Joseph Mitchell. JM foi um repórter norte-americano (trabalhou para a New Yorker desde 1938 até à sua morte), autor de O Segredo de Joe Gould, uma verdadeira pérola da literatura. A edição portuguesa recebeu prefácio de António Lobo Antunes, que não lhe poupou elogios.
Mitchell nasceu na Carolina do Norte em 1908, mas um artigo escrito sobre um leilão de tabaco (a sua família tinha uma quinta de algodão e tabaco que ele manteve toda a vida) chamou a atenção de um editor de Nova Iorque. Mudou-se para lá em 1929 e nunca mais deixou de viver na cidade, escrevendo sobre as figuras peculiares que ia conhecendo nas ruas, nos cafés, nas zonas portuárias, nos salões de jogos. Faleceu em 1996. Ornitólogo amador, disse que o acontecimento mais espectacular que alguma vez testemunhou foi um pica-pau a desfazer madeira de uma árvore no paúl de Ashpole (CN). Ficou a observá-lo durante uma hora.

Lembrei-me muito da personagem de Joe Gould quando, há poucos dias, se soube a notícia da morte de João Serra, o Senhor do Adeus. São figuras excêntricas e marginais como estas que emprestam alma às grandes cidades.

Aqui ficam três louvoures (absolutamente justos) à obra de Mitchell:

«A riqueza de pormenores, o equilíbrio da descrição dos retratos que Mitchell traça de trabalhadores nova-iorquinos que trabalham em estruturas de aço, de vigaristas ciganos, de exterminadores de ratos das docas... são divertidos, fluidos, apurados, ácidos e comoventes... Aqui está um livro que deveria continuar a servir de inspiração aos jornalistas que aspiram registar falas memoráveis de todos os géneros»
The Atlantic

«Um dos melhores escritores americanos de não-ficção... Mitchell, um grande repórter, talvez o que melhor sabe ouvir de todos os jornalistas vivos... Quem quiser ouvir a América a falar, é por aqui que deve começar»
USA Today


«Desde perto dos tempos da última Guerra Mundial que os escritores das revistas de Nova Iorque têm tentado soar como Joseph Mitchell»

Observer

Joseph Mitchell
O Fundo da Baía
Âmbar
219 págs., 5 euros (na venda de livros da estação de comboios de Cais do Sodré)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Martin Page, A Primeira Aldeia Global

Um livro de história conciso e muito instrutivo - escrito de forma vívida e cativante por um jornalista. Aqui fica uma informação imensamente curiosa e relevante:

«Sete anos mais tarde [provavelmente 1596], o conde de Essex, juntamente com Sir Francis Drake, Sir Walter Raleigh e outros, dirigiram-se de barco para a costa sul do Algarve. [...] Os soldados desembarcaram e, após destruírem as pescas de atum existentes no porto, foram conduzidos, pelo conde, até à cidade, que, entretanto, fora abandonada pelos moradores. A mansão mais nova e mais bela de Faro era o Paço Episcopal. Essex mudou-se para lá, emquanto os soldados vagueavam pelos arredores, queimando aldeias sem encontrarem nada de valor, além de vacas e porcos. O bispo do Algarve, D. Jerónimo Osório, tinha, ainda recentemente, deslocado a Sé da cidade de Silves, no interior, para a costa. Era conhecido em toda a Europa católica pelos seus conhecimentos em humanidades, teologia, e história e literatura latina. A sua biblioteca era uma da bibliotecas privadas mais valiosas. À falta de melhor para pilhar, o conde de Essex mandou carregar os livros do bispo a bordo do navio, e levou-os para Inglaterra, oferecendo-os a Sir Thomas Bodley, fundador da Biblioteca Bodliana da Universidade de Oxford. Tornou-se, talvez, a única grande biblioteca ocidental a ter, como núcleo principal, uma colecção de livros roubados». (pág. 203)

Martin Page
A Primeira Aldeia Global
Casa das Letras
295 págs.
3,5 estrelas

Barnett Newman (segundo Peter Schjeldahl)


«Barnett Newman tinha 40 anos quando , em 1945, fez a primeira das suas pinturas que sobreviveram. (Destruiu as telas anteriores) Daí até à sua morte, de ataque de coração, em 1970, produziu umas meras 120 pinturas [...]. A sua reputação como um dos grandes modernos apenas se impôs em 1959, quando Greenberg lhe arranjou uma exposição na French & Company, uma galeria na Madison Avenue. O acontecimento causou uma agitação que se converteu numa tempestade de reconhecimento, embora não atraísse compradores de imediato. Já em 1955, Newman havia vendido apenas uma pintura a uma pessoa não sua amiga. Na maior parte dos anos 40 e 50, ele e a sua devotada mulher [...] viveram sobretudo do salário dela. Comparado com Newman, o proverbialmente negligenciado Van Gogh foi uma sensação fulgurante.
[...] Considere-se o título de uma pintura de 1950-51 que é uma pedra de toque da colecção do MoMA: Vir Heroicus Sublimis (Homem Heróico e Sublime). Com esta tela vermelha, com cinco zips e 540 cm de comprimento, o artista adiantou uma ambição de conjurar mais conteúdo espiritual de menos forma física do que havia parecido concebível nalguma arte anterior (ou posterior, para o caso tanto faz) do século XX. [...]
Parecia estar em toda a parte, com os seus fatos elegantes e o bigode de brigadeiro britânico, segurando um monóculo caricato. Era vivaço e muito afectuoso, especialmente para os jovens artistas; os amigos chamavam-lhe Barney. [...] O seu famoso sofisma - 'a estética está para os artistas como a ornitologia está para os pássaros' - ganha peso com o seu envolvimento na observação de pássaros.»

Peter Schjeldahl, Let's See, págs. 116-177
Na foto: The Wild (1950), uma tela com 240 cm por 2,5 de largura

Al Berto, página de O Medo


rasgo o melancólico interior dos insectos
atravesso a sabedoria das infindáveis areias do sono
sou o último habitante do lado mitológico da cidades

por vezes consigo acordar
sacio a sede com a tua sombra para que nada me persiga
teço o casulo da cocaína escondo-me no mel da língua
lembro-me... fomos dois amigos e um cão sem nome
percorrendo a estelar noite doutros corpos

mas já me doem as veias quando te chamo
o coração oxidado enjaulou a vontade de te amar
os dedos largaram profundas ausências sobre o rosto
e os dias são pequenas manchas de cor sem ninguém

ficou-me este corpo sem tempo fotografado à sombra da casa
onde a memória se quebra com os objectos e amarelece no papel
pouco ou nada me lembro de mim
em tempos escrevi um diário perdido numa mudança de casa
continuo a monologar com o medo a visão breve destes ossos
suspensos no fulcro da noite por um fio de sal

partir de novo seria tudo esquecer
mesmo a ave que de manhã vem dar asas à boca recente do sonho
mas decidi ficar aqui a olhar sem paixão o lixo dos espelhos
onde a vida e os barcos se cobrem de lodo

pernoito neste corpo magro espero a catástrofe
basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia
não... não voltarei a suicidar-me
pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade

O ÚLTIMO HABITANTE, pág. 237

Pesa-papéis: um golpe de sorte


Não sei qual será o motivo para os bibliófilos serem também amiúde apreciadores de pesa-papéis (e não pisa-papéis, como tantas vezes se ouve). O Comilão adquiriu o seu pesa-papéis favorito (e único da sua colecção) em Washigton D.C., no National Air and Space Museum, do Smithsonian, o museu mais visitado do mundo. Tinha visto um idêntico (não igual, pois é artesanal) em Nova Iorque, mas era demasiado caro (100 ou 120 dólares). Depois o Comilão arrependeu-se e andou o resto dessa viagem à procura. Desconhecia que tínhamos encontro marcado para o último dia, na loja do dito museu. Representa o planeta Marte, com o seu leque incrível de tons vermelhos.

Após ter lido um ensaio delicioso de Capote sobre pesa-papéis, descrevendo a sua visita a Colette (que lhe ofereceu um exemplar precioso), ela sim coleccionadora e connoisseuse (será assim que se diz?), o Comilão quis saber um pouco mais sobre o assunto. E foi à livraria Férin, na Rua Nova do Almada, que costuma ter livros sobre estes assuntos muito específicos, à procura de uma obra sobre o tema. O empregado não encontrou nada. Uns tempos depois, ao remexer na estante dos saldos daquela livraria, o Comilão encontrou a obra acima ilustrada. E adquiriu-a por 20 €. Um golpe de sorte. Explicação: o empregado não tinha encontrado nada porque só procurara livros em francês. Felizmente, pois em contrário o Comilão teria tido de desembolsar uma bela maquia.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Irving Wallace, O Prémio

O Prémio é uma leitura agradável, que se faz a bom ritmo, apesar do aspecto volumoso. Começa com uma série de pessoas a receber um telegrama anunciando que venceram o Nobel. Depois acompanhamo-las na viagem a Estocolmo, para a cerimónia de entrega do prémio. A figura central é Andrew Craig, o vencedor na categoria da Literatura: um alcoólico viúvo que se culpabiliza pela morte da mulher num acidente e que há vários anos não escreve nada. Depois há o casal Marceau (Química), que atravessa uma crise conjugal, o Dr. John Garrett (Medicina), que frequenta um grupo de psicanálise e conseguiu fazer um transplante de coração bem sucedido, e Max Stratman (Física), um professor alemão que vive exilado nos EUA com a sobrinha. Contém informações valiosas sobre a história do prémio, se bem que a maior parte das vezes 'metidas a martelo'. Há ainda situações inverosímeis, para não dizer inaceitáveis: tudo bem que Wallace quer dizer que os galardoados são homens e mulheres de carne e osso, mas coloca-
-os a assumir atitudes impensáveis. Além disso o autor, que tanto fala da psicologia humana, comete alguns erros infantis...
Em todo o caso há que valorizar a ideia inicial, na opinião do Comilão fascinante, de escrever um livro sobre o Nobel e os seus bastidores, e o ritmo, que é uma qualidade fundamental num livro. Será que o próprio Wallace tinha a pretensão de conquistar o Prémio?

Um índice de informações úteis

Filhos de génios também saem génios?: pág. 202
Hemingway: pág. 204
'Injustiças' (Edison e outros): págs. 205-207
Freud e o Nobel: pág. 221 e 235
Paz: págs. 250-251
Alfred Nobel: págs. 260-263
Como os galardoados gastaram o seu dinheiro: págs. 263-265
Banquete com o Rei da Suécia (história do ovo): pág. 276
Literatura: págs. 307-311 (e 227-228)
Medicina: págs. 349-351
Mais curiosidades: págs. 358-360
O olhar de um céptico - Ocidente vs. Rússia: págs. 386-389

O Prémio
Irving Wallace
Livros do Brasil
680 págs.
3 estrelas