segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Stefan Zweig, O Mundo de Ontem


Desde que tinha lido uma boa biografia de Zweig (Jean-Jacques Lafaye, O Porvir da Nostalgia), que o Comilão queria ler este livro de memórias.
Foi a segunda obra de Zweig que leu, depois de Hommes et Destins (Le Livre de Pôche, resenha de biografias de figuras como Proust, Albert Schweitzer, Freud, Mahler). Stefan Zweig nasceu em Viena, império austro-húngaro, em 1881, mas gostava de se considerar um europeu. Filho de um rico industrial judeu, formou-se em História e Filosofia e tornou-se um escritor cosmopolita e viajado. O Mundo de Ontem é um livro de memórias que gira grandemente em torno das duas guerras que marcaram o século XX: 14-18 e 39-45 (embora Zweig tenha falecido, ou melhor, se tenha suicidado em 42, no Brasil).
O livro começa por nos mostrar a Viena de finais do século XIX, a sua prosperidade e segurança. Era uma cidade onde convergiam pessoas de toda a Europa central e onde se respirava música e teatro. As descrições das famílias do pai, um homem rico mas poupado e discreto, e da mãe, toda cheia de si, são muito engraçadas.
Da viagem que fez a Paris terminada a licenciatura, deixou-nos um belo relato: «Em nenhum outro lugar foi possível sentir de modo mais feliz a despreocupação simultaneamente ingénua e e maravilhosamente sábia da exitência do que em Paris, onde ela estava gloriosamente comprovada na beleza das formas, na amenidade do clima, na riqueza e na tradição. Cada um de nós, os jovens, assimilou de parte desta ligeireza e contribuiu para ela: chineses e escandinavos, espanhóis e gregos, brasileiros e canadianos, todos se sentiam em casa junto ao Sena. Não havia constrangimento, podia-se falar, pensar, rir, ralhar como se quisesse, cada um vivia como lhe aprazia, sociável ou solitário, gastador ou poupado, no luxo ou na boémia, havia espaço para qualquer excentricidade e tudo era possível.» [pág. 147] «Era fácil estabelecer relações com mulheres e era fácil desfazê-las, cada tacho com seu testo, cada jovem com com uma namorada prazenteira e liberta de qualquer pudor. Ah, como era leve a vida em Paris, como era boa, sobretudo quando se era jovem!» [pág. 149]
Quando a hipótese de um conflito surgiu no horizonte, Zweig e os seus amigos pacifistas (franceses, belgas, alemães) pensaram formar uma comunidade fraternal de escritores, mas nada conseguiram contra a guerra. Algumas das melhores páginas são retratos de pessoas: Hugo von Hofmannsthal, o génio precoce idolatrado por todos os jovens escritores; Joyce; uma visita ao ateliê de Rodin; Richard Strauss; Romain Rolland, grande melómano; Freud (a história do último ano de vida do mestre em Londres é extraordinária). A viagem à Rússia em 1928 é outro dos momentos altos da narrativa. Aqui fica uma frase reveladora sobre Moscovo: «As pessoas acumulavam-se em tudo quanto era sítio, nas lojas, à porta dos teatros; em toda a parte eram obrigadas a esperar, tudo estava demasiado organizado, por conseguinte, não funcionava lá muito bem; a nova burocracia , que devia manter a 'ordem', ainda se deliciava a preencher impressos e autorizações, atrasando tudo.» [pág. 363] O grande desgosto de Zweig foi não poder ficar na sua Áustria natal, errando sem pátria por esse mundo fora: «Se havia arte que tínhamos de aprender de novo, nós, os perseguidos e desalojados daqueles tempos hostis a qualquer arte e a qualquer colecção, essa era a arte de dizer adeus a tudo o que outrora fora o nosso orgulho e o nosso amor.» [pág. 388] O grande 'orgulho e amor' de Zweig havia sido a colecção de manuscritos que reuniu ao longo de décadas, com textos autógrafos não apenas dos seus amigos escritores, mas de figuras da dimensão de Leonardo da Vinci, Goethe, Napoleão, Balzac, Nietzche, Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin...
Óptima tradução de Gabriela Fragoso, cuidada, apesar de um ou outro erro ortográfico que não chegam para manchar o trabalho. Uma curiosidade: quase no final da leitura, o Comilão reparou que o marcador, relativo a uma exposição na Fundação Cartier, dizia em letras grandes à cabeça 'Terre Natale'. Terra natal, o lugar por que Zweig suspirou durante toda a sua vida como exilado.

Stefan Zweig
O Mundo de Ontem - recordações de um europeu
Assírio & Alvim
478 págs.
4 estrelas
€30

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