quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Al Berto, página de O Medo


rasgo o melancólico interior dos insectos
atravesso a sabedoria das infindáveis areias do sono
sou o último habitante do lado mitológico da cidades

por vezes consigo acordar
sacio a sede com a tua sombra para que nada me persiga
teço o casulo da cocaína escondo-me no mel da língua
lembro-me... fomos dois amigos e um cão sem nome
percorrendo a estelar noite doutros corpos

mas já me doem as veias quando te chamo
o coração oxidado enjaulou a vontade de te amar
os dedos largaram profundas ausências sobre o rosto
e os dias são pequenas manchas de cor sem ninguém

ficou-me este corpo sem tempo fotografado à sombra da casa
onde a memória se quebra com os objectos e amarelece no papel
pouco ou nada me lembro de mim
em tempos escrevi um diário perdido numa mudança de casa
continuo a monologar com o medo a visão breve destes ossos
suspensos no fulcro da noite por um fio de sal

partir de novo seria tudo esquecer
mesmo a ave que de manhã vem dar asas à boca recente do sonho
mas decidi ficar aqui a olhar sem paixão o lixo dos espelhos
onde a vida e os barcos se cobrem de lodo

pernoito neste corpo magro espero a catástrofe
basta manter-me imóvel e olhar o que fui na fotografia
não... não voltarei a suicidar-me
pelo menos esta noite estou longe de desejar a eternidade

O ÚLTIMO HABITANTE, pág. 237

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