terça-feira, 15 de outubro de 2024

Octavio Paz, Trabalhos do poeta (sobre a desaprendizagem)

 XIV

«Com dificuldade, avançando alguns milímetros por ano, abro um caminho entre as rochas. Há milénios que meus dentes se gastam e minhas unhas se quebram para chegar além, ao outro lado, à luz, ao ar livre. E agora que minhas mãos sangram e meus dentes oscilam, mal seguros, numa cavidade gretada pela sede e pela poeira, detenho-me para contemplar minha obra: passei a segunda parte de minha vida a partir as pedras, a perfurar as muralhas, a rachar as portas e a separar os obstáculos que interpus entre a luz e eu durante a primeira parte de minha vida.»

in Antologia Poética, ed. Círculo de Leitores, p. 41


O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998),
prémio Nobel da literatura em 1990


Dino Buzzati, excertos de O deserto dos tártaros

Imagem do filme O Deserto dos Tártaros, de Valerio Zurlini (1976)


«Estendido na cama estreita, fora do halo de luz do candeeiro a petróleo, enquanto fantasiava sobre a sua vida, Giovanni Drogo foi inesperadamente dominado pelo sono. E, contudo, justamente naquela noite - oh, se tivesse sabido talvez não tivesse vontade de dormir - justamente naquela noite principiava para ele a irremediável fuga do tempo.

Até então avançara pela despreocupada idade da primeira juventude , uma estrada que em crianças nos parece infinita, em que os anos passam devagar e com passos suaves, de modo que ninguém se apercebe da sua passagem. Caminha-se tranquilamente, olhando em redor com curiosidade, não é preciso ter pressa, ninguém atrás nos urge e ninguém nos espera, e também os nossos companheiros avançam sem preocupações, detendo-se amiúde para brincar. Das casas, às portas, a gente crescida saúda-nos benevolentemente e faz-nos sinal indicando o horizonte com sorrisos cúmplices; o coração começa assim a bater de desejos heróicos e ternos, saboreia-se a expectativa das coisas maravilhosas que nos aguardam mais adiante; não, ainda não se vêem, mas é certo, é absolutamente certo que um dia lá chegaremos.

Falta muito ainda? Não, basta atravessar aquele rio lá ao fundo, ultrapassar aquelas colinas verdes. Ou será que já chegámos? Não serão estas árvores, estes prados, esta casa branca, aquilo que procurávamos? Por alguns instantes temos a impressão de que sim e gostaríamos de ficar por ali. Depois ouvimos dizer que o melhor está mais adiante e fazemo-nos de novo à estrada sem esforço.

E assim se prossegue caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o Sol brilha alto no céu e parece nunca ter vontade de chegar ao ocaso.

Mas a certa altura, quase instintivamente, voltamo-nos para trás e vemos que uma cancela se fechou nas nossas costas, obstruindo-nos a via do regresso. Então sentimos que algo mudou, o Sol já não parece imóvel, desloca-se rapidamente ai de nós, nem temos tempo de o fixar pois já se precipita no confim do horizonte; apercebemo-nos de que as nuvens já não ficam estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem encavalitando-se umas nas outras, tal é a sua urgência; percebemos que o tempo passa e que também a estrada um dia deverá terminar.»  pp. 50-51

O escritor Dino Buzzati

«Quase dois anos depois, Giovanni Drogo dormia, uma noite, no seu quarto da Fortaleza. Vinte e dois meses tinham passado sem trazer nada de novo, e ele ali ficara parado, à espera, como se a vida devesse ter para com ele uma tolerância especial. Contudo, vinte e dois meses são muito tempo e muitas coisas podem acontecer: dá tempo a que se formem novas famílias, nasçam crianças e comecem até a falar, para que surja uma grande casa onde antes só havia ervas, para que uma mulher bonita envelheça e já ninguém a deseje, para que uma doença, mesmo das mais longas, incube (e entretanto o homem continua a viver despreocupado), consuma lentamente o corpo, se retire durante breves aparências de cura para regressar com maior ímpeto sorvendo as últimas esperanças, resta ainda tempo para que o morto seja sepultado e esquecido, para que o filho seja capaz de rir de novo e à noite acompanhe as raparigas pelas alamedas e, leviano, junto ao gradeamento do cemitério.

A existência de Drogo, ao invés, tinha como que parado. Um dia igual, preenchido com as mesmas coisas, repetira-se centenas de vezes sem dar um passo em frente. O rio do tempo passava sobre a Fortaleza, abria rachas nas paredes, arrastava para baixo poeira e fragmentos de pedra, corroía os degraus e as correntes, mas passava em vão por cima de Drogo; ainda não conseguira agarrá-lo na sua fuga.» pp. 85-86

«Até que a neve nos terraços da Fortaleza se fez mole e os pés se afundavam nela como na lama. Das montanhas mais próximas chegou de repente o som doce das águas; aqui e ali, ao longo das fragas, avistavam-se tiras brancas verticais que cintilavam ao sol, e os soldados de vez em quando davam por si a cantarolar, como há meses não faziam.

O Sol já não corria tão veloz como antes, ansioso de se pôr; começava a deter-se um pouco no meio do céu, devorando a neve acumulada, e era inútil que as nuvens se precipitassem ainda dos gelos do norte: neve já não conseguiam deitar, apenas chuva, e a chuva mais não fazia do que derreter a pouca neve que restava. O estio estava de volta.

Já se ouviam de manhã trinados de pássaros que todos julgavam ter esquecido. Em compensação, os corvos já não se reuniam no planalto da Fortaleza à espera dos restos das cozinhas, espalhando-se pelo vale em busca de comida fresca.

À noite, nas camaratas, as prateleiras onde se arrumam as mochilas, os armeiros onde estão as espingardas, as próprias portas, até os belos móveis de nogueira maciça no quarto do coronel, todas as madeiras da Fortaleza, incluindo as mais antigas, davam estalos no escuro. Por vezes eram estouros secos como tiros de pistola, parecia mesmo que qualquer coisa se partia; acordavam, nas tarimbas, e punham-se de orelha à escuta, mas nada mais ouviam do que outros estalos que bichanavam na noite.

Eis chegado o tempo em que nas velhas tábuas ressuscita uma pertinaz saudade da vida. Muitos anos antes, nos seus tempos felizes, eram um juvenil fluxo de calor e de força, dos ramos saíam-lhes feixes de rebentos. Depois a planta foi abatida. E agora, que é Primavera, desponta nelas um latejo de vida infinitamente menor. Em tempos folhas e flores; agora apenas uma vaga recordação, o bastante apenas para fazer crac e depois silêncio até ao ano que vem.»  pp. 155-6

«A porta de casa abriu-se e Drogo sentiu imediatamente o velho cheiro doméstico, como quando em criança regressava à cidade após os meses de Verão passados na casa de campo. Era um cheiro familiar e amigo, todavia, passado tanto tempo, havia nele um não-sei-quê de tristeza. É certo que lhe recordava já distantes, a doçura de certos domingos, os jantares animados, a meninice perdida, mas falava também de janelas fechadas, de deveres escolares, de limpeza matinal, de doenças, de discussões, de ratos.» p. 161

capa da edição portuguesa, da Cavalo de Ferro


Goebbels, Rosenberg, Strauss, Hindemith e Fürtwangler

O primeiro foi o Dr. Joseph Goebbels (1897-1945), ministro da propaganda de Hitler, que à imagem do seu líder se suicidaria quando já não havia esperança possível para o nazismo, arrastando consigo para a morte toda a família (mulher, cinco filhas e um filho), a 1 de maio de 1945. 





O segundo foi o grande ideólogo da raça Albert Rosenberg (1893-1946), rival de Goebbels, por este considerado, desdenhosamente, «um intelectual». O autor do livro que citamos em seguida chama-lhe «cão de guarda ideológico».






O terceiro foi o famoso compositor Richard Strauss (1864-1949), não o das valsas (com quem não tinha parentesco, apesar de partilharem o mesmo apelido), mas o de Assim Falava Zaratustra (e do hino dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936).






O quarto foi o compositor 'modernista' Paul Hindemith (1895-1963), que se tornaria cidadão americano.







O quinto foi o grande maestro Willhelm Furtwängler (1886-1954). titular da Filarmónica de Berlim durante mais de duas décadas.







Apresentações feitas, vamos a um excerto da excelente biografia de Goebbels por Ralf Georg Reuth que dá conta das intrigas no meio musical alemão durante o nazismo.

«Rosenberg attacked the composer Richard Strauss, probably the most significant figure in German music, a man with an international reputation whom Goebbels himself admired. Rosenberg asserted
that having this composer serve as president of the Reich Chamber of Music could result in a "cultural scandal," because Strauss was having the libretto of his opera Die schweigsame Frau (The Silent Woman) "written by a Jew" who served as "the artistic advisor to a Jewish emigré theater" in Switzerland. Rosenberg's attack made Goebbels "furious," the more so because Hess sided with Rosenberg. Goebbels took satisfaction in pointing out that Rosenberg had his facts wrong; Strauss's librettist was Stefan Zweig, "an Austrian Jew, not to be confused with the emigré Arnold
Zweig."

But the ideological watchdog stuck to Goebbels's trail. His next attack was directed against Paul Hindemith, who had been described in the journal Die Musik, published by Rosenberg's Cultural Community, as "not acceptable from the standpoint of cultural policy." Rosenberg now accused Hindemith of spending most of his time in the company of Jews and turning German music into kitsch, which made him unfit to belong to "the highest art institutes of the new Reich."49 Goebbels himself
had praised Hindemith in June as "one of the strongest talents in the younger German generation of composers," although he had to reject "the basic intellectual position that finds expression in most of his works up to this point."

Wilhelm Furtwängler, vice president of the Reich Chamber of Music, whom Goebbels regarded as an inspired conductor, came to Hindemith's defense in the Deutsche Allgemeine Zeitung. Demand for Furtwängler's article was so great that the paper had to reprint it. Furtwängler argued that, given the worldwide shortage of truly productive musicians, one could not cast aside a man like Hindemith. He asked a question, implicitly directed at Rosenberg: what would happen "if political denunciation were applied to the fullest extent in the arts?" The evening the article appeared, Goebbels and Goering happened to be at the Staatsoper. Furtwängler received long and pointedly enthusiastic applause. Goering apparently took this incident as the occasion to inform Hitler that a public expression of disapproval of a Reichsleiter had occurred. Goebbels for his part threatened Furtwängler, saying he "would show him which of them was stronger." Furtwängler thereupon resigned as vice president of the Reich Chamber of Music and director of the Staatsoper and decided, with heavy heart, to emigrate to the United States. The "Hindemith case" had thus broadened to become the "Furtwängler case," the case of the Reich Chamber of Music.

Officially it looked as though Rosenberg had won a complete victory in this instance. But then Furtwängler's plan of going to America was thwarted by his rival Arturo Toscanini, who publicly spoke out against him. With Hitler's approval Goebbels then used a combination of offers and threats to persuade Furtwängler to issue a sort of apology for his article." He said he had never intended to meddle in the Reich's cultural policy; such policy should be made "solely by the Führer... and by the
expert minister appointed by him." Goebbels had killed three birds with one stone: he had enabled Furtwängler to save face, frustrated Rosenberg, and kept this distinguished conductor in Germany. Goebbels probably had the last point in mind when he wrote in his diary, "a great moral success for us." But there remained "the troubling question of how we're going to keep him occupied."

Rosenberg continued to snipe. He demanded that Furtwängler apologize to him as well, for "his political attacks on the NS Cultural Community." Probably at Hess's urging, Furtwängler complied, after which Rosenberg directed his organization, which had no official party status, to "preserve strict neutrality toward Furtwängler." All the prerequisites seemed in place for an official reconciliation between the conductor and Hitler. In the end Furtwängler kept his old positions and in 1936 was
made musical director of the Bayreuth Wagner Festival.»

Ralf Georg Reuth, Goebbels - the life of Joseph Goebbels the mephistophelian genius of nazi propaganda, Constable, p. 202-203

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

As misteriosas runas

 No Tolstói de S. Zweig - livro fascinante, mais retrato psicológico do que biografia - deparei-me com uma frase em que mencionava «as rugas e as runas» do grande escritor.

Mas o que são runas? Confesso que não sabia. Tinha apenas a ideia de algo ligado a pedras e aos celtas.

Aqui vão alguns dados interessantes retirados do wiktionary:


Étymologie

(XVIIe siècle) Du vieux norrois rún (« rune »), par divers intermédiaires, où ce mot signifiait « secret murmuré » et « connaissance cachée ». Mais l'origine plus ancienne du mot rune demeure incertaine.

L'hypothèse majoritaire est qu'il viendrait du proto-celtique (puis du proto-germanique qui l'aurait importé tel quel) rūno- qui signifiait « secret, mystère, incantation, savoir secret, magie ».
On retrouve des variantes de ce mot avec des sens proches dans la plupart des langues celtiques et germaniques (dont : langues scandinaves) anciennes ou plus récentes. Toutes convergent vers l'idée que les runes constituent un système 
initiatique lié à la parole, d'où le composé gaulois comrunos, ou cobrunos « confident, initié (dans le secret) »

Une autre hypothèse a également été avancée : le mot pourrait venir d'une racine indo-européenne signifiant « creuser », en accord avec le fait que les runes étaient gravées.

Nom commun 

Singulier

Pluriel

rune

runes

\ʁyn\

Alphabet original des runes nordiques proto-germaniques, ou « vieux futhark » à 24 lettres organisées en trois ættir (familles) de 8 runes.

rune \ʁyn\ féminin

1.    Caractère de l’ancienne écriture scandinave, ou même proto-germanique.

N.B. : - L'écriture runique est le plus ancien système connu d'écriture des langues germaniques orientales et septentrionales. Les plus anciennes inscriptions datent du IIe siècle ap. J.-C. (mais certaines pourraient dater de la première moitié du Ier siècle).
- Elle est globalement déchiffrée et lue, mais certaines inscriptions — probablement codées ou lacunaires — posent encore des problèmes de déchiffrement
.
- Cela d'autant plus qu'elle a d'abord servi à retranscrire une langue aujourd'hui disparue (et reconstruite : le proto-germanique), qu'elle a servi ensuite à transcrire plusieurs langues parentes mais différentes.
- De fait il existe plusieurs types et formes de runes, avec des variantes régionales, et qui ont évolué dans l'histoire, même si leur parenté est avérée et évidente : il existe ainsi des « runes proto-germaniques puis germaniques » ou vieux 
fuþark à vingt-quatre signes, des « runes cryptiques » (dont des « runes de substitution », et d'autres « runes à crochets », dites aussi hahalrunar « runes-chaudron »), et des « runes scandinaves » (ou fuþark à 16 signes, dont une « variante de Rök » : kortkvistrunar « runes à branches courtes »), et même une variante « sans brindilles ».
- À chacun des caractères de cet alphabet étaient associées et attribuées certaines vertus 
magiques.

§  Tu n'ignores pas la vertu des runes
Ni le pouvoir des signes tracés sur les lames
 — (Anatole FranceLe Mannequin d'osier, 1897, p. 86)

§  il entend la parole étrange,
le dire, les chants chamarrés,
les runes mieux chantées, parées
dans les prés de Väinölä,
les landes du Kalevala.
 — (Elias LönnrotLe Kalevala, Chant 3 — Traduction de Gabriel Rebourcet)

§  Les runes n'ont point seulement une valeur graphique : comme les surates du Koran ou comme le carmen, elles ont un pouvoir mystérieux. Tout cède à l'influence de leur vertu magique : elles dissipent l'orage, domptent les flammes, guérissent les maladies, raniment les morts..., et miracle plus grand, inspirent une tendresse nouvelle au cœur qui ne voulait plus aimer. — (Louis ÉnaultLa Norvège, 1857)

§  De nombreuses inscriptions, difficiles à déchiffrer, se prêtent d'ailleurs à une interprétation relevant d'un usage magique des runes. Certaines laissent entrevoir une caste de prêtres-magiciens, capables de conférer un pouvoir magique aux objets par le simple fait d'y graver leur nom. Ces maîtres des runes se désignent quelques fois sous le nom d'erilaR, terme dont la signification demeure incertaine, parfois rapproché du nom d'un peuple, les Hérules, parfois apparenté au titre scandinave jarl, mais interprété comme désignant un magicien, un prêtre, ou les deux à la fois. Les runologues contemporains mettent toutefois en garde contre la tentation d'attribuer une signification magique à toute inscription obscure, soulignant que la valeur magique des runes n'est attestée que de façon marginale, même si les runes peuvent, comme tout système d'écriture, être utilisées pour écrire des formules magiques. Les inscriptions indéchiffrables peuvent tout aussi bien être attribuées à des artisans insuffisamment lettrés. — (Frédéric Vincent, « Runes et inscriptions runiques », Fafnir – L'encyclopédie de la Scandinavie médiévale, 2018, § 5).




quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Nietzsche, A Gaia Ciência - "Quem nos limpará das mãos esse sangue?"

O monólogo do louco, excerto de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche:


«Onde está Deus?, gritou ele, já vos digo! Matámo-lo – vós e eu! Somos todos os seus assassinos! Mas como foi que fizemos isso? Como fomos capazes de esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja com que apagámos o horizonte inteiro? Que fizemos ao desamarrarmos esta terra do seu sol? Para onde irá agora a Terra? Para onde nos levará o seu movimento? Para longe de todos os sóis? Não nos teremos precipitado numa queda sem fim? Uma queda para trás, para o lado, para a frente, para toda a parte? Haverá ainda um em cima e um em baixo? Ou não erraremos através de um nada infinito? Não sentimos já o sopro do vazio? Não está mais frio? Não é sempre noite sem descanso e cada vez mais noite? Não teremos que acender as lanternas desde manhãzinha? Não ouviremos nada ainda do ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não nos chega o cheiro da putrefacção divina? – Também os deuses apodrecem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos! Como teremos consolação, nós, os assassinos dos assassinos? O que o mundo até então possuíra de mais sagrado e de mais forte perdeu o seu sangue com as nossas facas – quem nos limpará das mãos esse sangue?»


Retrato de Friedrich Nietzsche por Edvard Munch, 1906




segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Um poema de Juan Vicente Piqueras

            O Quarto Vazio

Para Carlos Edmundo de Ory

Era um dos teus jogos preferidos,
O que é que há num quarto vazio?,
perguntavas. Ficávamos em silêncio.

O que é que há num quarto vazio?

Os que não conheciam o jogo
talvez dissesse: Nada, e tu dizias: Não.
Nada é nada, eu disse o que é que.

Até que alguém dizia, por exemplo: Silêncio.
E tu dizias: Sim.
E outro dizia: Pó.
E o jogo começava a ganhar asas.

Umas pegadas no chão.
Um fantasma. Uma tomada. O buraco
de um prego. A penumbra.
O quadrado que a ausência de um quadro
deixa na parede. Um fio.
Uma carta no chão.
A marca de uma mão na parede.
Um raio de sol que entra pela janela.
Uma teia de aranha. Um pedaço
de papel. Uma unha. Uma formiga perdida.

A música que vem da rua
(haverá música sem alguém que a escute?).
Uma mancha de fumo ou humidade.
Gatafunhos ou pássaros ou nomes
ou um desenho da Laura na parede.

Tu ias dizendo sim ou não.
Tu sabias. Eras o inventor do jogo.
Tu já sabias, Carlos, o que há
no quarto vazio onde acabas de entrar.

Era um dos teus jogos preferidos.
- O que há num quarto vazio?
- Um fantasma.
- Já disseram.
- Sim, mas este de que falo é outro.




terça-feira, 16 de julho de 2024

A paleta de Renoir

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) em casa

«Dizer como era a sua paleta diz mais sobre isso do que todas as minhas explicações. Mas permita-me o leitor que lhe lembre, antes de mais, como costuma ser a paleta de um pintor. As cores amontoam-se nela de qualquer maneira, sobrepõem-se, misturam-se. A camada é tão espessa que deixa de se ver a madeira, Nessa amalgama é impossível isolar uma tonalidade pura, pelo que o pintor está sempre a acrescentar-lhe o conteúdo de mais um tubo que, uma vez dada a primeira pincelada, é absorvido pela massa informe. Erguem-se à sua volta regimentos de pincéis. Ele está sempre a abastecer-se dessa reserva, porque ao cabo de algumas aplicações estão todos empastados daquela amalgama multicolor. Quando o pintor já não consegue ter mão na confusão, raspa a paleta com uma faca e espreme para cima dela os tubos até à dobra. Tem uma gaveta cheia de tubos novos que em breve vão substituir os vazios. Esta descrição não é nenhuma crítica. Há grandes pintores que procedem desta maneira, chegando mesmo a aplicar a tinta directamente do tubo para a tela.

A paleta de Renoir era limpa «como uma moeda nova». Era uma paleta quadrada que se encaixava na tampa do estojo, que tinha a mesma forma. Num dos godés duplos, punha óleo de linhaça puro e no outro uma mistura de óleo de linhaça com essência de terebintina, em partes iguais. Numa mesa baixa, colocada ao lado do cavalete, tinha um copo cheio de essência de terebintina em que enxaguava o pincel, praticamente após cada aplicação de cor. Na caixa, e em cima da mesa, tinha alguns pincéis de reserva. Nunca tinha em uso mais do que dois ou três ao mesmo tempo. Mal começavam a ficar gastos, esborratavam, ou por qualquer outra razão deixavam de lhe proporcionar uma absoluta precisão de pincelada, deitava-os fora.

Exigia que destruíssem os pincéis velhos, não fosse ele pegar em algum deles por engano enquanto trabalhava. Na mesinha havia também panos limpos, com os quais secava de vez em quando o pincel.

 A caixa de pintura de Renoir, Museu d'Orsay

A caixa, tal como a mesa, estava sempre perfeitamente arrumada Os tubos de tintas eram sempre enrolados a partir da dobra, de forma obter, ao espremê-los, a quantidade exacta de tinta pretendida No princípio da sessão de trabalho, a paleta, que tinha sido limpa no fim da sessão interior, estava imaculada. Para a limpar, começava por raspá-la, vertendo os resíduos para um papel, que atirava logo para o lume. Em seguida, esfregava-a com um pano embebido em essência de terebintina até que não houvesse o mínimo resquício de tinta na madeira. O pano ia também para o lume. Os pincéis eram lavados com água fria e sabão. Recomendava que se esfregassem suavemente os pelos na palma da mão. De vez em quando encarregava-me desta operação, o que me enchia de orgulho.

Renoir descreveu pessoalmente a composição da sua paleta numa nota que a seguir transcrevo e que data, evidentemente, do período impressionista:

Branco de prata, amarelo de crómio, amarelo-de-nápoles, ocre amarelo, terra-de-siena natural, vermelhão, laca de garança, verde-veronês, verde-esmeralda, azul-cobalto, azul-ultramarino, espátula,
raspadeira, essência, tudo o que é necessário para pintar O ocre amarelo, o amarelo-nápoles e a terra-de-siena são meros tons intermédios que são dispensáveis, pois podem fazer-se com outras cores.
Pincéis redondos de pêlo de marta, pincéis chatos de seda. 

Registe-se a ausência do preto, «a rainha das cores», como ele próprio iria proclamá-lo no seu regresso de Itália.

O Almoço dos remadores, 1880-1881, The Phillips Collection, Washington D.C.

À medida que se aproxima do fim da vida irá simplificar ainda mais a sua paleta. A ordem de que me lembro na época em que pintava As Grandes Banhistas do Louvre, no ateliê de Les Collettes, era
a seguinte: começando de baixo, junto da abertura para o polegar, o branco de prata, em quantidade generosa, o amarelo-de-nápoles num montículo minúsculo, tal como todas as cores que se seguem - o
ocre amarelo, a terra-de-siena, o ocre vermelho, a laca de garança, a terra verde, o verde-veronès, o azul-cobalto, o negro-marfim. Esta selecção de cores não era inalterável. Eu vi Renoir, embora em raras
ocasiões, aplicar vermelhão chinês que punha na paleta entre a laca de garança e a terra verde. Nos últimos tempos de vida, muitas vezes simplificou ainda mais e para alguns quadres dispensou o ocre vermelho e a terra verde. Nem Gabrielle nem eu o vimos usar o amarelo de crómio. Esta exiguidade de meios era impressionante. Os montículos de tinta pareciam perdidos na superfície de madeira, rodeados de vazio. Renoir encetava-os com parcimónia, com respeito. Era como se achasse que iria ofender Mullard, que lhe tinha preparado meticulosamente aquelas cores, se atafulhasse a paleta com elas e depois não as usasse até à mais pequena parcela.»

Jean Renoir, PIERRE-AUGUSTE RENOIR, MEU PAI pp. 336-338
Ed. Bizâncio