sexta-feira, 11 de outubro de 2024

As misteriosas runas

 No Tolstói de S. Zweig - livro fascinante, mais retrato psicológico do que biografia - deparei-me com uma frase em que mencionava «as rugas e as runas» do grande escritor.

Mas o que são runas? Confesso que não sabia. Tinha apenas a ideia de algo ligado a pedras e aos celtas.

Aqui vão alguns dados interessantes retirados do wiktionary:


Étymologie

(XVIIe siècle) Du vieux norrois rún (« rune »), par divers intermédiaires, où ce mot signifiait « secret murmuré » et « connaissance cachée ». Mais l'origine plus ancienne du mot rune demeure incertaine.

L'hypothèse majoritaire est qu'il viendrait du proto-celtique (puis du proto-germanique qui l'aurait importé tel quel) rūno- qui signifiait « secret, mystère, incantation, savoir secret, magie ».
On retrouve des variantes de ce mot avec des sens proches dans la plupart des langues celtiques et germaniques (dont : langues scandinaves) anciennes ou plus récentes. Toutes convergent vers l'idée que les runes constituent un système 
initiatique lié à la parole, d'où le composé gaulois comrunos, ou cobrunos « confident, initié (dans le secret) »

Une autre hypothèse a également été avancée : le mot pourrait venir d'une racine indo-européenne signifiant « creuser », en accord avec le fait que les runes étaient gravées.

Nom commun 

Singulier

Pluriel

rune

runes

\ʁyn\

Alphabet original des runes nordiques proto-germaniques, ou « vieux futhark » à 24 lettres organisées en trois ættir (familles) de 8 runes.

rune \ʁyn\ féminin

1.    Caractère de l’ancienne écriture scandinave, ou même proto-germanique.

N.B. : - L'écriture runique est le plus ancien système connu d'écriture des langues germaniques orientales et septentrionales. Les plus anciennes inscriptions datent du IIe siècle ap. J.-C. (mais certaines pourraient dater de la première moitié du Ier siècle).
- Elle est globalement déchiffrée et lue, mais certaines inscriptions — probablement codées ou lacunaires — posent encore des problèmes de déchiffrement
.
- Cela d'autant plus qu'elle a d'abord servi à retranscrire une langue aujourd'hui disparue (et reconstruite : le proto-germanique), qu'elle a servi ensuite à transcrire plusieurs langues parentes mais différentes.
- De fait il existe plusieurs types et formes de runes, avec des variantes régionales, et qui ont évolué dans l'histoire, même si leur parenté est avérée et évidente : il existe ainsi des « runes proto-germaniques puis germaniques » ou vieux 
fuþark à vingt-quatre signes, des « runes cryptiques » (dont des « runes de substitution », et d'autres « runes à crochets », dites aussi hahalrunar « runes-chaudron »), et des « runes scandinaves » (ou fuþark à 16 signes, dont une « variante de Rök » : kortkvistrunar « runes à branches courtes »), et même une variante « sans brindilles ».
- À chacun des caractères de cet alphabet étaient associées et attribuées certaines vertus 
magiques.

§  Tu n'ignores pas la vertu des runes
Ni le pouvoir des signes tracés sur les lames
 — (Anatole FranceLe Mannequin d'osier, 1897, p. 86)

§  il entend la parole étrange,
le dire, les chants chamarrés,
les runes mieux chantées, parées
dans les prés de Väinölä,
les landes du Kalevala.
 — (Elias LönnrotLe Kalevala, Chant 3 — Traduction de Gabriel Rebourcet)

§  Les runes n'ont point seulement une valeur graphique : comme les surates du Koran ou comme le carmen, elles ont un pouvoir mystérieux. Tout cède à l'influence de leur vertu magique : elles dissipent l'orage, domptent les flammes, guérissent les maladies, raniment les morts..., et miracle plus grand, inspirent une tendresse nouvelle au cœur qui ne voulait plus aimer. — (Louis ÉnaultLa Norvège, 1857)

§  De nombreuses inscriptions, difficiles à déchiffrer, se prêtent d'ailleurs à une interprétation relevant d'un usage magique des runes. Certaines laissent entrevoir une caste de prêtres-magiciens, capables de conférer un pouvoir magique aux objets par le simple fait d'y graver leur nom. Ces maîtres des runes se désignent quelques fois sous le nom d'erilaR, terme dont la signification demeure incertaine, parfois rapproché du nom d'un peuple, les Hérules, parfois apparenté au titre scandinave jarl, mais interprété comme désignant un magicien, un prêtre, ou les deux à la fois. Les runologues contemporains mettent toutefois en garde contre la tentation d'attribuer une signification magique à toute inscription obscure, soulignant que la valeur magique des runes n'est attestée que de façon marginale, même si les runes peuvent, comme tout système d'écriture, être utilisées pour écrire des formules magiques. Les inscriptions indéchiffrables peuvent tout aussi bien être attribuées à des artisans insuffisamment lettrés. — (Frédéric Vincent, « Runes et inscriptions runiques », Fafnir – L'encyclopédie de la Scandinavie médiévale, 2018, § 5).




quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Nietzsche, A Gaia Ciência - "Quem nos limpará das mãos esse sangue?"

O monólogo do louco, excerto de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche:


«Onde está Deus?, gritou ele, já vos digo! Matámo-lo – vós e eu! Somos todos os seus assassinos! Mas como foi que fizemos isso? Como fomos capazes de esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja com que apagámos o horizonte inteiro? Que fizemos ao desamarrarmos esta terra do seu sol? Para onde irá agora a Terra? Para onde nos levará o seu movimento? Para longe de todos os sóis? Não nos teremos precipitado numa queda sem fim? Uma queda para trás, para o lado, para a frente, para toda a parte? Haverá ainda um em cima e um em baixo? Ou não erraremos através de um nada infinito? Não sentimos já o sopro do vazio? Não está mais frio? Não é sempre noite sem descanso e cada vez mais noite? Não teremos que acender as lanternas desde manhãzinha? Não ouviremos nada ainda do ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não nos chega o cheiro da putrefacção divina? – Também os deuses apodrecem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos! Como teremos consolação, nós, os assassinos dos assassinos? O que o mundo até então possuíra de mais sagrado e de mais forte perdeu o seu sangue com as nossas facas – quem nos limpará das mãos esse sangue?»


Retrato de Friedrich Nietzsche por Edvard Munch, 1906




segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Um poema de Juan Vicente Piqueras

            O Quarto Vazio

Para Carlos Edmundo de Ory

Era um dos teus jogos preferidos,
O que é que há num quarto vazio?,
perguntavas. Ficávamos em silêncio.

O que é que há num quarto vazio?

Os que não conheciam o jogo
talvez dissesse: Nada, e tu dizias: Não.
Nada é nada, eu disse o que é que.

Até que alguém dizia, por exemplo: Silêncio.
E tu dizias: Sim.
E outro dizia: Pó.
E o jogo começava a ganhar asas.

Umas pegadas no chão.
Um fantasma. Uma tomada. O buraco
de um prego. A penumbra.
O quadrado que a ausência de um quadro
deixa na parede. Um fio.
Uma carta no chão.
A marca de uma mão na parede.
Um raio de sol que entra pela janela.
Uma teia de aranha. Um pedaço
de papel. Uma unha. Uma formiga perdida.

A música que vem da rua
(haverá música sem alguém que a escute?).
Uma mancha de fumo ou humidade.
Gatafunhos ou pássaros ou nomes
ou um desenho da Laura na parede.

Tu ias dizendo sim ou não.
Tu sabias. Eras o inventor do jogo.
Tu já sabias, Carlos, o que há
no quarto vazio onde acabas de entrar.

Era um dos teus jogos preferidos.
- O que há num quarto vazio?
- Um fantasma.
- Já disseram.
- Sim, mas este de que falo é outro.




terça-feira, 16 de julho de 2024

A paleta de Renoir

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) em casa

«Dizer como era a sua paleta diz mais sobre isso do que todas as minhas explicações. Mas permita-me o leitor que lhe lembre, antes de mais, como costuma ser a paleta de um pintor. As cores amontoam-se nela de qualquer maneira, sobrepõem-se, misturam-se. A camada é tão espessa que deixa de se ver a madeira, Nessa amalgama é impossível isolar uma tonalidade pura, pelo que o pintor está sempre a acrescentar-lhe o conteúdo de mais um tubo que, uma vez dada a primeira pincelada, é absorvido pela massa informe. Erguem-se à sua volta regimentos de pincéis. Ele está sempre a abastecer-se dessa reserva, porque ao cabo de algumas aplicações estão todos empastados daquela amalgama multicolor. Quando o pintor já não consegue ter mão na confusão, raspa a paleta com uma faca e espreme para cima dela os tubos até à dobra. Tem uma gaveta cheia de tubos novos que em breve vão substituir os vazios. Esta descrição não é nenhuma crítica. Há grandes pintores que procedem desta maneira, chegando mesmo a aplicar a tinta directamente do tubo para a tela.

A paleta de Renoir era limpa «como uma moeda nova». Era uma paleta quadrada que se encaixava na tampa do estojo, que tinha a mesma forma. Num dos godés duplos, punha óleo de linhaça puro e no outro uma mistura de óleo de linhaça com essência de terebintina, em partes iguais. Numa mesa baixa, colocada ao lado do cavalete, tinha um copo cheio de essência de terebintina em que enxaguava o pincel, praticamente após cada aplicação de cor. Na caixa, e em cima da mesa, tinha alguns pincéis de reserva. Nunca tinha em uso mais do que dois ou três ao mesmo tempo. Mal começavam a ficar gastos, esborratavam, ou por qualquer outra razão deixavam de lhe proporcionar uma absoluta precisão de pincelada, deitava-os fora.

Exigia que destruíssem os pincéis velhos, não fosse ele pegar em algum deles por engano enquanto trabalhava. Na mesinha havia também panos limpos, com os quais secava de vez em quando o pincel.

 A caixa de pintura de Renoir, Museu d'Orsay

A caixa, tal como a mesa, estava sempre perfeitamente arrumada Os tubos de tintas eram sempre enrolados a partir da dobra, de forma obter, ao espremê-los, a quantidade exacta de tinta pretendida No princípio da sessão de trabalho, a paleta, que tinha sido limpa no fim da sessão interior, estava imaculada. Para a limpar, começava por raspá-la, vertendo os resíduos para um papel, que atirava logo para o lume. Em seguida, esfregava-a com um pano embebido em essência de terebintina até que não houvesse o mínimo resquício de tinta na madeira. O pano ia também para o lume. Os pincéis eram lavados com água fria e sabão. Recomendava que se esfregassem suavemente os pelos na palma da mão. De vez em quando encarregava-me desta operação, o que me enchia de orgulho.

Renoir descreveu pessoalmente a composição da sua paleta numa nota que a seguir transcrevo e que data, evidentemente, do período impressionista:

Branco de prata, amarelo de crómio, amarelo-de-nápoles, ocre amarelo, terra-de-siena natural, vermelhão, laca de garança, verde-veronês, verde-esmeralda, azul-cobalto, azul-ultramarino, espátula,
raspadeira, essência, tudo o que é necessário para pintar O ocre amarelo, o amarelo-nápoles e a terra-de-siena são meros tons intermédios que são dispensáveis, pois podem fazer-se com outras cores.
Pincéis redondos de pêlo de marta, pincéis chatos de seda. 

Registe-se a ausência do preto, «a rainha das cores», como ele próprio iria proclamá-lo no seu regresso de Itália.

O Almoço dos remadores, 1880-1881, The Phillips Collection, Washington D.C.

À medida que se aproxima do fim da vida irá simplificar ainda mais a sua paleta. A ordem de que me lembro na época em que pintava As Grandes Banhistas do Louvre, no ateliê de Les Collettes, era
a seguinte: começando de baixo, junto da abertura para o polegar, o branco de prata, em quantidade generosa, o amarelo-de-nápoles num montículo minúsculo, tal como todas as cores que se seguem - o
ocre amarelo, a terra-de-siena, o ocre vermelho, a laca de garança, a terra verde, o verde-veronès, o azul-cobalto, o negro-marfim. Esta selecção de cores não era inalterável. Eu vi Renoir, embora em raras
ocasiões, aplicar vermelhão chinês que punha na paleta entre a laca de garança e a terra verde. Nos últimos tempos de vida, muitas vezes simplificou ainda mais e para alguns quadres dispensou o ocre vermelho e a terra verde. Nem Gabrielle nem eu o vimos usar o amarelo de crómio. Esta exiguidade de meios era impressionante. Os montículos de tinta pareciam perdidos na superfície de madeira, rodeados de vazio. Renoir encetava-os com parcimónia, com respeito. Era como se achasse que iria ofender Mullard, que lhe tinha preparado meticulosamente aquelas cores, se atafulhasse a paleta com elas e depois não as usasse até à mais pequena parcela.»

Jean Renoir, PIERRE-AUGUSTE RENOIR, MEU PAI pp. 336-338
Ed. Bizâncio

John Berger, Porquê olhar os animais?


Alguns excertos do livro de John Berger:

«Na sua maioria, os pensadores do século XIX raciocinavam mecanicamente, porque o seu era o século das máquinas. Pensavam em termos de cadeias, ramificações, linhas, anatomias comparativas, mecanismos de relógio, grelhas. Tinham conhecimentos sobre potência, resistência, velocidade, competição. Consequentemente, fizeram muitas descobertas sobre o mundo material, sobre instrumentos e produção». p. 69

«Tudo o que deriva da capacidade dos macacos para balançarem de ramo em ramo - braquiação, como lhe chamam os zoólogos - distingue-os. Tarzan só balançava nas lianas - nunca usou os seus braços pendentes como se fossem pernas, caminhando de lado.

Contudo, na história evolutiva, esta diferença é, na realidade, um laço. Os macacos caminham sobre os quatro membros ao longo dos topos dos ramos e usam a cauda para se dependurarem. Os ancestrais comuns ao homem e aos macacos começaram, em vez disso, a usar os seus braços - começaram a tornar-se braquiais. Segundo reza a teoria, isto deu-lhes a vantagem de alcançar a fruta nas extremidades dos ramos!». pp. 72-73

«a classe dominante britânica no século XVIII não apreciava as vistas de mar» p. 91

«Todas as linguagens da arte foram desenvolvidas como uma tentativa de transformar o instantâneo em permanente.» 93

«Temos apenas um tempo breve para agradar aos vivos, toda a eternidade para agradar aos mortos.» (Antígona)

A matriz marxista de Berger está bem vincada no ensaio 'Os comedores e o comido' (interessante, mas cheio de preconceitos) e em passagens como:

«A vida urbana tendeu sempre a produzir uma visão sentimental da natureza. Pensa-se na natureza como um jardim, ou uma vista enquadrada por uma janela, ou uma arena de liberdade. Camponeses, marinheiros, nómadas sabiam mais. A natureza é energia e luta.»

«Há alguns anos, quando ponderava a face histórica da arte, escrevi que avaliava uma obra de arte de acordo com a possibilidade de esta ajudar ou não os homens do mundo moderno a reclamarem os seus direitos sociais. Mantenho-me fiel a isso.» p. 93

quinta-feira, 13 de junho de 2024


Um excerto de O Fantasma do Rei Leopoldo, de Adam Hochschild - quando H. M. Stanley é enviado para socorrer Emin Paxá, governador de uma província do Sudão ameaçada por fundamentalistas muçulmanos, em meados (ou finais) da década de 1880.

«Entretanto, Stanley avançava rijamente na floresta tropical à frente da coluna da vanguarda, condenando à forca um desertor e ordenando numerosos espancamentos, alguns dos quais aplicados por si próprio. Os roubos de mantimentos significavam que os soldados e carregadores estiveram, durante grande parte da viagem, perto de morrer à fome. Aos infelizes que viviam ao longo desse caminho, a expedição pareceu um exército invasor, pois tomava, por vezes, mulheres e crianças como reféns para que os chefes locais lhe dessem alimentos. Um dos oficiais de Stanley escreveu no seu diário: «Acabámos hoje a última banana... os nativos não fazem comércio, não se lhe prestam, de modo nenhum. Como último recurso, temos de apanhar mais algumas mulheres.» Outro recordava que, parecendo-lhe que poderiam ser atacados, «Stanley mandou queimar todas as aldeias em redor». Outro, ainda, descreveu a chacina com tanta indiferença como se falasse de uma caçada:

«Foi interessantíssimo estar oculto no mato a ver os nativos tranquilamente ocupados no seu trabalho quotidiano. Umas mulheres... faziam farinha de banana moendo bananas secas. Víamos homens a construir cabanas ou ocupados noutros trabalhos, rapazes e raparigas a correr a toda a volta e a cantar... Abri a festa atingindo um tipo no peito. Caiu como uma pedra... Imediatamente se despejou uma saraivada [de tiros] sobre a aldeia.»

Um dos membros da expedição, que cortara a cabeça a um africano, meteu-a numa caixa com sal e mandou-a para Londres a fim de ali ser embalsamada e montada pelo seu taxidermista de Picadilly.

Das 389 homens da coluna de vanguarda de Stanley, mais de metade morreram enquanto abriam caminho a machete através da floresta tropical de Ituri, avançando, por vezes, apenas quatrocentos metros num dia. Quando ficavam sem comida, assavam formigas. Trepavam sobre raízes de árvores gigantescas e tinham de montar acampamento em terrenos pantanosos no meio de chuvas tropicais, uma das quais durou setenta horas ininterruptas. Os homens desertavam, perdiam-se na selva, afogavam-
-se ou sucumbiam ao tétano, à disenteria e a úlceras gangrenadas. Outros eram mortos pelas frechas e pelas armadilhas de estacas envenenadas dos habitantes da floresta, cheios de terror ao ver aqueles estranhos armados e meio mortos de fome que irrompiam turbulentamente nos seus territórios.»

domingo, 12 de maio de 2024

A Roma antiga de Tom Holland

«Viver em Roma como membro da elite era, em grande medida, viver numa colina. Se César viesse a monopolizar o Palatino, o mais exclusivo de todos os bairros residenciais, havia então muitos outros cumes que podiam proporcionar refúgio do «rumor turbulento da grande Roma». Abaixo do senador na sua mansão lá no alto, onde as brisas eram refrescantes, estendia-se a mais espantosa paisagem urbana ao cimo da terra. Cobria quilómetros, numa imensa aglomeração de mármore e tijolo: clamorosa, pestilenta, envolvida em fumo. Nenhuma outra cidade na história fora alguma vez tão vasta como era agora Roma.

Vivia ali mais de um milhão de pessoas, comprimidas em poucos quilómetros quadrados - mais do que toda a população da Dácia. Poucas passavam os seus dias como os senadores, rodeadas de jardins, fontanários e o que havia de mais moderno em decoração de interiores. A procura de alojamento era inexorável e predatória para isso. O mercado imobiliário em Roma era um exercício de exploração. «Não há nenhum lugar onde se pague mais por um quarto miserável.»,12 A renda cobrada nos quarteirões residenciais onde a maior parte da plebe encontrava alojamento era classificada com uma precisão impiedosamente exigente. Quanto mais alto o andar, maior a probabilidade de os respetivos inquilinos sentirem os quartos tremer quando passavam os carros na rua, os verem desmoronar-se em caso de sismo ou perderem o acesso à rua por causa de um incêndio. O estrondo de edifícios a desabar era um dos sons mais distintivos da cidade. E, por isso, também o som de pranto: eram muitos os bairros em que «o choro pelos falecidos constitui um ruído de fundo constante». Viver em Roma, essa capital de um império ímpar e pacífico, era viver na sombra da morte.

Até andar pela cidade era, para muitos romanos, ficar com a própria vida em risco. As ruas eram gordurosas e escorregadias e, muitas delas - apesar da tentativa de Nero de melhorar a infraestrutura urbana - eram tão tortuosas e estreitas como sempre haviam sido. Os ricos, transportados nas suas liteiras acima dos apertos das multidões, pareciam navios a elevarem-se numa tempestade; os pobres, a sofrerem cotoveladas aqui, a serem derrubados por traves-mestras ali, sabiam que qualquer escorregadela, no meio da compressão generalizada, poderia facilmente revelar-se fatal. Até no Capitólio não era inédito que houvesse quem fosse mortalmente pisado. Em bairros mais insalubres, onde carros muito sobrecarregados com materiais de construção se debatiam continuamente para percorrer as ruas sinuosas, os engarrafamentos acarretavam riscos particulares. «Suponha-se que um eixo se partia sob o peso carregado e uma avalanche de mármore se abatia sobre uma multidão densa, o que restaria então dos corpos? Que membros, que ossos seriam discerníveis?»


Não havia maneira de legislar contra tais acidentes. Ainda que os veículos de mercadorias pesadas tivessem sido interditos em Roma durante as horas o diurnas, era impraticável proibir o transporte de materiais de construção: tanto a renovação da cidade como a ocupação da plebe dependiam disso. No entanto, a própria legislação que existia apenas criava os seus próprios problemas. O estrépito das carroças ao longo da noite garantia que Roma era uma cidade que nunca dormia. Isto, por sua vez, dava lugar aos seus próprios perigos. A medida que a noite caia, as lojas eram entaipadas e os cães ficavam quietos, também o ritmo das ruas se tornava mais sombrio em todos os sentidos. Um homem importante, embrulhado na sua capa escarlate e guardado por um numeroso séquito de rufiões, todos com tochas acesas, não tinha de se preocupar; porém, nem toda a gente podia comportar tal proteção.
A ambiência em Roma era muitas vezes ameaçadora, sobretudo depois do pôr do sol. Era tal a reputação dos setores mais sórdidos da capital, onde prosperavam o jogo e a prostituição, que se dizia
que Nero e Otão tinham andado por lá em jovens, apenas pela diversão de espancarem os transeuntes. De todo o modo, os assaltantes podiam estar emboscados em qualquer lado e as rixas de rua não se confinavam a tabernas e bordéis. A alvorada revelava invariavelmente cadáveres que juncavam as ruas da capital, prostrados em charcos de sangue. Por vezes, eram recolhidos por aqueles que os tinham amado, para serem chorados e cremados; outras vezes, ficavam onde tinham tombado, para serem varridos com o lixo.

O próprio Júpiter decretara que cadáveres, tal como os excrementos, deviam ser depositados para lá dos limites sagrados da idade. O asseio seguia-se à piedade. Desde o encontro de Numa com Egéria, esta fora uma máxima duradoura do povo romano. Inevitavelmente, o desafio de manter as ruas varridas, de prover esgotos capazes de servir toda a cidade, de garantir que a água não estagnava, mas antes corria fresca e límpida sempre que fosse precisa, a borbulhar em fontanários, a fluir de canos, era inexorável. O maior sistema de drenagem de Roma tinha sido construído nos tempos dos reis e os seus aquedutos mais emblemáticos durante a república. No entanto, a infraestrutura mais importante da cidade tinha uma origem mais recente. Uma sucessão de Césares, a governar uma cidade que parecia eternamente em perigo de desabar sob o crescimento explosivo da sua população, tinham patrocinado projetos de engenharia em escala verdadeiramente titânica. «Calcule-se a quantidade de água que abastece os edifícios públicos, os banhos, as piscinas, os canais, as residências privadas, os jardins e as propriedades suburbanas; tenha-se em conta a que distância a água tem de viajar até chegar ao seu destino; vejam-se as fileiras de arcos, os túneis que atravessam montanhas, as pontes que nivelam os vales mais profundos e não nos resta alternativa senão reconhecer que não há nada mais notável no mundo.»

Quando o tio de Plínio, mais para o fim da sua enciclopédia, deixou esta opinião, fê-lo com a autoridade de um homem que compilara listas de cada maravilha no cosmos. Contudo, os aquedutos que eram certamente algo sem par- não chegavam a toda a gente na cidade. A plebe, nas suas habitações sobrelotadas, tinha de carregar a água até aos andares superiores e, depois, carregar os dejetos para cisternas cobertas lá em baixo. Não importava o cuidado que se punha na decantação da urina vasilhas,
a fim de ser usada por pisoadores no tratamento de tecidos, e não importava a assiduidade com que os grupos de escravos públicos podiam transportar, durante a noite, excrementos para os campos à volta da cidade, para serem usados por agricultores como fertilizante: o cheiro nauseabundo nunca ficava totalmente arredado dos limites da cidade. Misturando-se com poeira, suor, o incenso
oferecido aos deuses, o fumo orgânico das oficinas e os odores de uma multiplicidade inumerável de fogueiras para cozinhar, fazia tanto parte de Roma que viver lá era quase não dar por ele. O fedor apenas se tornava insuportável em períodos de epidemias e outras doenças, quando a cidade ficava envolvida por emanações pútridas. Quanto mais diarreia houvesse, mais cadáveres; e quantos mais cadáveres, mais emanações pútridas. Então, o povo olhava para o César e César olhava para os deuses». 

Tom Holland, Pax - Guerra e Paz na Idade de Ouro de Roma
(Vogais) págs. 343-347