terça-feira, 15 de outubro de 2024

Dino Buzzati, excertos de O deserto dos tártaros

Imagem do filme O Deserto dos Tártaros, de Valerio Zurlini (1976)


«Estendido na cama estreita, fora do halo de luz do candeeiro a petróleo, enquanto fantasiava sobre a sua vida, Giovanni Drogo foi inesperadamente dominado pelo sono. E, contudo, justamente naquela noite - oh, se tivesse sabido talvez não tivesse vontade de dormir - justamente naquela noite principiava para ele a irremediável fuga do tempo.

Até então avançara pela despreocupada idade da primeira juventude , uma estrada que em crianças nos parece infinita, em que os anos passam devagar e com passos suaves, de modo que ninguém se apercebe da sua passagem. Caminha-se tranquilamente, olhando em redor com curiosidade, não é preciso ter pressa, ninguém atrás nos urge e ninguém nos espera, e também os nossos companheiros avançam sem preocupações, detendo-se amiúde para brincar. Das casas, às portas, a gente crescida saúda-nos benevolentemente e faz-nos sinal indicando o horizonte com sorrisos cúmplices; o coração começa assim a bater de desejos heróicos e ternos, saboreia-se a expectativa das coisas maravilhosas que nos aguardam mais adiante; não, ainda não se vêem, mas é certo, é absolutamente certo que um dia lá chegaremos.

Falta muito ainda? Não, basta atravessar aquele rio lá ao fundo, ultrapassar aquelas colinas verdes. Ou será que já chegámos? Não serão estas árvores, estes prados, esta casa branca, aquilo que procurávamos? Por alguns instantes temos a impressão de que sim e gostaríamos de ficar por ali. Depois ouvimos dizer que o melhor está mais adiante e fazemo-nos de novo à estrada sem esforço.

E assim se prossegue caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o Sol brilha alto no céu e parece nunca ter vontade de chegar ao ocaso.

Mas a certa altura, quase instintivamente, voltamo-nos para trás e vemos que uma cancela se fechou nas nossas costas, obstruindo-nos a via do regresso. Então sentimos que algo mudou, o Sol já não parece imóvel, desloca-se rapidamente ai de nós, nem temos tempo de o fixar pois já se precipita no confim do horizonte; apercebemo-nos de que as nuvens já não ficam estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem encavalitando-se umas nas outras, tal é a sua urgência; percebemos que o tempo passa e que também a estrada um dia deverá terminar.»  pp. 50-51

O escritor Dino Buzzati

«Quase dois anos depois, Giovanni Drogo dormia, uma noite, no seu quarto da Fortaleza. Vinte e dois meses tinham passado sem trazer nada de novo, e ele ali ficara parado, à espera, como se a vida devesse ter para com ele uma tolerância especial. Contudo, vinte e dois meses são muito tempo e muitas coisas podem acontecer: dá tempo a que se formem novas famílias, nasçam crianças e comecem até a falar, para que surja uma grande casa onde antes só havia ervas, para que uma mulher bonita envelheça e já ninguém a deseje, para que uma doença, mesmo das mais longas, incube (e entretanto o homem continua a viver despreocupado), consuma lentamente o corpo, se retire durante breves aparências de cura para regressar com maior ímpeto sorvendo as últimas esperanças, resta ainda tempo para que o morto seja sepultado e esquecido, para que o filho seja capaz de rir de novo e à noite acompanhe as raparigas pelas alamedas e, leviano, junto ao gradeamento do cemitério.

A existência de Drogo, ao invés, tinha como que parado. Um dia igual, preenchido com as mesmas coisas, repetira-se centenas de vezes sem dar um passo em frente. O rio do tempo passava sobre a Fortaleza, abria rachas nas paredes, arrastava para baixo poeira e fragmentos de pedra, corroía os degraus e as correntes, mas passava em vão por cima de Drogo; ainda não conseguira agarrá-lo na sua fuga.» pp. 85-86

«Até que a neve nos terraços da Fortaleza se fez mole e os pés se afundavam nela como na lama. Das montanhas mais próximas chegou de repente o som doce das águas; aqui e ali, ao longo das fragas, avistavam-se tiras brancas verticais que cintilavam ao sol, e os soldados de vez em quando davam por si a cantarolar, como há meses não faziam.

O Sol já não corria tão veloz como antes, ansioso de se pôr; começava a deter-se um pouco no meio do céu, devorando a neve acumulada, e era inútil que as nuvens se precipitassem ainda dos gelos do norte: neve já não conseguiam deitar, apenas chuva, e a chuva mais não fazia do que derreter a pouca neve que restava. O estio estava de volta.

Já se ouviam de manhã trinados de pássaros que todos julgavam ter esquecido. Em compensação, os corvos já não se reuniam no planalto da Fortaleza à espera dos restos das cozinhas, espalhando-se pelo vale em busca de comida fresca.

À noite, nas camaratas, as prateleiras onde se arrumam as mochilas, os armeiros onde estão as espingardas, as próprias portas, até os belos móveis de nogueira maciça no quarto do coronel, todas as madeiras da Fortaleza, incluindo as mais antigas, davam estalos no escuro. Por vezes eram estouros secos como tiros de pistola, parecia mesmo que qualquer coisa se partia; acordavam, nas tarimbas, e punham-se de orelha à escuta, mas nada mais ouviam do que outros estalos que bichanavam na noite.

Eis chegado o tempo em que nas velhas tábuas ressuscita uma pertinaz saudade da vida. Muitos anos antes, nos seus tempos felizes, eram um juvenil fluxo de calor e de força, dos ramos saíam-lhes feixes de rebentos. Depois a planta foi abatida. E agora, que é Primavera, desponta nelas um latejo de vida infinitamente menor. Em tempos folhas e flores; agora apenas uma vaga recordação, o bastante apenas para fazer crac e depois silêncio até ao ano que vem.»  pp. 155-6

«A porta de casa abriu-se e Drogo sentiu imediatamente o velho cheiro doméstico, como quando em criança regressava à cidade após os meses de Verão passados na casa de campo. Era um cheiro familiar e amigo, todavia, passado tanto tempo, havia nele um não-sei-quê de tristeza. É certo que lhe recordava já distantes, a doçura de certos domingos, os jantares animados, a meninice perdida, mas falava também de janelas fechadas, de deveres escolares, de limpeza matinal, de doenças, de discussões, de ratos.» p. 161

capa da edição portuguesa, da Cavalo de Ferro


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