quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Tolstói e os 'instrumentos involuntários da História'

De ora em diante tentarei reanimar o blogue colocando salpicos das leituras que vou fazendo (ainda por cima descobri um software óptimo chamado Text Scanner que passa da fotografia para processador de texto). E começo com um excerto do segundo volume de Guerra e Paz, de Tolstói, que li há uns 15 anos e agora revisito:

«Napoleão iniciou a guerra com a Rússia porque não pôde evitar ir a Dresden, nem inebriar-se com as honras, nem vestir a farda polaca, nem ficar impressionado com o estado de ânimo que, na manhã de Junho, o incitou à aventura, nem conter a explosão de ira na presença de Kurákin e, depois, na de Balachov.

Alexandre recusava-se a quaisquer conversações porque se sentia pessoalmente insultado. Barclay de Tolly tentava comandar o exército da melhor maneira para cumprir o seu dever e ganhar a fama de grande cabo-de-guerra. Rostov lançou-se ao ataque porque era incapaz de conter o desejo de galopar por campo raso. E da mesma maneira agiam, por força das suas características pessoais, dos seus hábitos e das suas condições e objectivos, todos os inúmeros personagens participantes desta guerra». 


E agora o excerto mais genial (itálico meu):

«Eles tinham medo, eram vaidosos, alegravam-se, indignavam-se, raciocinavam, sempre com a convicção de que sabiam o que estavam a fazer e que o faziam em seu proveito próprio, mas todos eles eram instrumentos involuntários da história e levavam a cabo um trabalho obscuro para eles mas claro para nós. Este é o destino imutável de todos os agentes práticos, que são tanto menos livres quanto mais alta é a sua posição na hierarquia humana

Lev Tolstói, Guerra e Paz, volume II (trad. Nina e Filipe Guerra)

domingo, 26 de junho de 2022

A expansão portuguesa, Luís Filipe F. R. Thomaz

 «Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse, por negligência dos portugueses que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos»

Frei Vicente do Salvador, primeiro cronista do Brasil, 1.ª metade do século XVII

in Luís Filipe F. R. Thomaz, A Expansão Portuguesa - Um prisma de muitas faces, p. 14



«Poder-se-ia dizer, em termos muito genéricos, que a expansão espanhola é de tipo romano, enquanto a portuguesa é de tipo grego ou cartaginês»

LFFRT, p. 16

terça-feira, 3 de maio de 2022

A dama do nariz grande

Era primavera, a natureza parecia em festa. Um cavalheiro cujo nome não foi retido pelas crónicas não se cansava de apreciar o belo espetáculo oferecido pelos arbustos floridos em Holland Park.

- Vejam bem estas camélias! Seria preciso a pena de um Dumas para lhe fazer justiça! Ou o pincel de um pintor de génio...

A dois passos de distância, uma jovem senhora acompanhava a digressão do homem sobre as virtudes das plantas. Porém sem entusiasmo. Tratava-se de Lady N., famosa pelo magnífico apêndice nasal com que a Providência a brindara. A sua postura era recatada, como sempre, mas nem todo o recato do mundo era o suficiente para disfarçar a indiscreta protuberância.

- O aroma deste jasmim - divino! - é de levar uma pessoa às lágrimas... - continuava o homem. - Por favor, veja por si.

E desviou-se para dar passagem à senhora.

- Infelizmente não tenho olfacto - respondeu ela.

O seu apurado sentido de cavalheirismo levou-o a tentar reparar o agravo de imediato.

- Ó minha senhora, não imagina como lamento tamanho desperdício.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Um poema de Ricardo Reis

«Sou um evadido,
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não cansar?

Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte.
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Ser eu, é não ser.
Eu vivo fugido
Mas vivo a valer.»

Ricardo Reis, 5-4-1931

in Fernando Pessoa, Sobre a Heteronímia, Assírio & Alvim


Uma página do diário de Susan Sontag (Reborn)

 


quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Sandes de cozido

Vejam a sandes de cozido do Mercado de Torres Vedras e digam lá se não é uma maravilha... 



segunda-feira, 25 de outubro de 2021

KL. Apontamentos

Fui buscar à estante o magistral KL: a história dos campos de concentração nazis, de Nikolaus Wachsmann. Deixo alguns apontamentos apanhados um pouco ao acaso que me impressionaram tanto hoje como na altura em que o li.

«Durante semanas, no outono de 1942, os SS obrigaram os presos do Sonderkommando a desenterrarem todos os cadáveres enterrados em Birkenau; trabalharam dia e noite, com as mãos nuas, e (segundo uma estimativa de Rudolf Höss) desenterraram mais de 100 mil cadáveres. Um dos presos do Sonderkommando, Erko Hejblum, descreveu posteriormente a sua tarefa: «Andávamos num mar de lama e corpos putrefactos. Deveríamos ter estado equipados com máscaras de gás. Os cadáveres pareciam subir para a superfície - era como se a própria terra estivesse a rejeitá-los». Muitos dos presos do Sonderkommando não conseguiram suportar o pesadelo.» p. 326

«O departamento de contrafacção de Sachsenhausen passou gradulamente de 29 para mais de 140 judeus. A maioria deles chegou de Auchwitz. Um deles, Adolf Burger, sentiu-se «como se tivesse vindo do inferno para o céu». Os presos não eram espancados, tinham comida suficiente, trabalhavam em salas aquecidas, tinham tempo para ler, jogar às cartas e ouvir rádio, e dormiam em camas verdadeiras. A sua tarefa principal era falsificar moeda britânica (as tentativas para copiar dólares americanos nunca passaram da fase experimental). Os presos estimaram posteriormente que tinham produzido notas de banco no valor de 134 milhões de libras. O RSHA só considerou uma fração suficientemente boa para adquirir ouro e bens estrangeiros e para pagar a espiões; uma parte das notas restantes foi largada de avião sobre Inglaterra para desestabilizar a moeda. [...] No fim, graças a uma série de acasos felizes, os presos sobreviveram aos KL. O produto do seu trabalho, que acabou por lhes salvar a vida, também sobreviveu, dado que muitas das notas falsificadas permaneceram anos em circulação.» p. 345

«Alguns formulários chegavam a ter vinte páginas e os reclusos amanuenses dactilografavam dia e noite para dar vazão à papelada. Por seu lado, os médicos SS de Auschwitz queixavam-se de cãibras nas mãos por causa de assinarem tantas certidões de óbito; para facilitar a coisa, encomendaram carimbos com as suas assinaturas.» p. 350

«A partir de 1940, em conformidade com uma ordem de Hitler, reclusos especialmente seleccionados nos KL e nas prisões foram obrigados a despoletar bombas aliadas não detonadas; muitos homens foram pelos ares à frente dos seus camaradas aterrorizados.» p. 416