terça-feira, 20 de maio de 2014

Jacob Burckhardt, A civilização italiana do Renascimento

Aqui ficam alguns excertos de A civilização italiana do Renascimento, obra do historiador suíço Jacob Burckhardt escrita em 1860 e que terei lido há cerca de dez anos. Ali se encontram passagens memoráveis sobre a violência e a intriga política no Renascimento, sobre os 'jardins zoológicos' privados dos grandes senhores, a maledicência, o nascimento de grandes obras de arte e os estranhos costumes da época. Desde que Burckhardt escreveu a sua obra, o Renascimento nunca mais foi visto como uma época dominada pela paz, a prosperidade e a razão. Um dos meus excertos favoritos, sobre um padre homicida, aparece no final. As traduções são todas da autoria do Comilão (a foto também).


"Em muitos dos seus principais méritos os Florentinos são a matriz e o mais precoce tipo de Italianos e Europeus modernos em geral; também o são em muitos dos seus defeitos. Quando Dante compara a cidade que está sempre a emendar a sua constituição com o homem doente que está continuamente a mudar de postura para escapar à dor, toca com a comparação uma característica permanente da vida política de Florença.

Sob Adriano VI (1521-3), os escassos e tímidos melhoramentos, levados a cabo face à grande Reforma Alemã, vieram demasiado tarde. Ele pouco mais podia fazer do que proclamar o seu horror ao curso que as coisas tinham tomado até aqui, de simonia, nepotismo, prodigalidade, roubo, e libertinagem. O perigo do lado dos Luteranos não era de algum modo o maior; um perspicaz observador de Veneza, Girolamo Negro, revelou os seus receios de que um rápido e terrível desastre iria suceder à própria cidade de Roma.
Sob Clemente VII todo o horizonte de Roma estava preenchido por vapores, como aquele véu pesado com que o sirocco cobriu a Campagna, e que tornou os últimos meses de verão tão mortais. O Papa não era menos detestado em casa do que no estrangeiro. As pessoas sensatas estavam tomadas de ansiedade, eremitas apareceram sobre as ruas e praças de Roma, prenunciando o destino de Itália e do mundo, e chamando o Papa pelo nome de Anticristo; a facção dos Colonna ergueu a sua cabeça desafiadoramente; o indomável Cardeal Pompeo Colonna, cuja mera existência era uma ameaça permanente ao Papado, ousou surpreender a cidade em 1526, esperando, com a ajuda de Carlos V, tornar-se Papa naquele local e naquele momento, logo que Clemente fosse morto ou capturado. Foi pouca sorte para Roma que este conseguisse escapar para o Castel Sant’Angelo, e que o destino para o qual ele próprio estava reservado possa bem ser chamado pior do que a morte.

A instituição então desenvolvida durante os últimos anos de Clemente VII, e sob Paulo III, Paulo IV, e os seus sucessores, em face da defecção de meia Europa, era uma nova, regenerada hierarquia, que evitou todos os grandes e perigosos escândalos dos tempos anteriores, particularmente o nepotismo, com as suas tentativas de alargamento territorial, e que, em aliança com os príncipes Católicos, e impelida por uma jovem força espiritual, encontrou a sua tarefa principal na recuperação do que havia sido perdido. Neste sentido pode dizer-se em perfeita verdade que a salvação moral do papado se deve aos seus inimigos mortais. E agora também a sua posição política, embora sob a tutela de Espanha, se tornava intocável; quase sem esforço herdou, pela extinção dos seus vassalos, a linha legítima dos Este e a Casa dos Della Rovere, os ducados de Ferrara e Urbino. Mas sem a Reforma – se, de facto, é possível concebê-la de fora – todo o estado eclesiástico teria há muito passado para mãos seculares.

Patriotismo
Em conclusão, consideremos brevemente o efeito destas circunstâncias políticas no espírito da nação em conjunto.
É evidente que a incerteza política geral em Itália, no decorrer dos séculos XV e XVI, era de modo a excitar nos melhores espíritos do tempo uma oposição e desgosto patriótico. Dante e Petrarca, nos seus dias, proclamaram alto uma Itália comum, o objecto dos mais altos esforços de todos os seus filhos. Pode objectar-se que este era apenas o entusiasmo de uns poucos homens altamente instruídos, que a massa do povo não partilhava; mas dificilmente pode ter sido de outra forma mesmo na Alemanha, muito embora em nome pelo menos esse país estivesse unido, e reconhecesse no Imperador a cabeça suprema. As primeiras experiências patrióticas da língua Alemã, se excluirmos alguns versos dos Minnesänger, pertencem aos humanistas do tempo de Maximiliano I e depois, e soam como um eco das declamações italianas. E porém, na realidade, a Alemanha era há muito uma nação num sentido mais verdadeiro do que a Itália alguma vez havia sido desde os dias de Roma. França deve a consciência da sua unidade nacional sobretudo aos seus conflitos com os Ingleses, e Espanha nunca logrou absorver definitivamente Portugal, apesar da relação próxima entre estes países. Para Itália, a existência do Estado eclesiástico, e as condições somente sob as quais ele podia continuar, eram um obstáculo permanente à unidade nacional, um obstáculo cuja tentativa sequer de remoção parecia inútil. Quando, portanto, no decurso político do século XV, o nome da pátria comum é enfaticamente mencionado, é-o na maioria dos casos para aborrecer qualquer outro Estado Italiano. Mas estes desgostosos e profundamente sérios apelos ao sentimento nacional não voltaram a ser ouvidos até mais tarde, quando o país estava inundado de Franceses e Espanhóis. O sentido deste patriotismo local pode dizer-se em alguma medida ter tomado o lugar deste sentimento, embora não fosse senão um pobre equivalente dele.

Uma prova significativa do interesse alargado na história natural é encontrada no zelo que se exibiu num período precoce pela colecção e estudo comparativo de plantas e animais. Itália reivindica ter sido o primeiro criador de jardins botânicos, embora possivelmente eles tenham servido um fim eminentemente prático, e a própria reivindicação da prioridade possa ser discutida. É de longe de maior importância que príncipes e homens ricos, ao dispor os seus jardins de recreio, instintivamente tenham feito questão de coleccionar o maior número possível de plantas em todas as suas espécies e variedades. (...) Ao lado de um cuidadoso cultivo de frutos para os propósitos da mesa, encontramos um interesse pela planta em si, na medida do prazer que proporciona ao olho. A história da arte ensina-nos em quão tardio período esta paixão pelas colecções botânicas foi posta de lado, e deu lugar ao que era considerado o estilo pitoresco de jardinagem paisagística.
As colecções, também, de animais estrangeiros não apenas gratificavam a curiosidade, mas serviam os propósitos da observação. A facilidade de transportação dos portos do sul e leste do Mediterrâneo, e a amenidade do clima italiano, fizeram com que fosse praticável comprar os maiores dos animais do sul, ou aceitá-los como presentes dos Sultões. As cidades e príncipes ansiavam especialmente por manter leões vivos, mesmo onde o leão não era, como em Florença, o símbolo do Estado. A caverna dos leões era geralmente dentro ou perto do palácio do governo, como em Perugia e Florença; em Roma, ficava na encosta do Capitólio. As feras por vezes serviam de executoras de julgamentos políticos, e sem dúvida, à parte disto, mantinham vivo um certo terror no imaginário popular. A sua condição era também tomada por presságio de bem ou mal. A sua fertilidade, especialmente, era considerada um sinal de prosperidade pública (...). As crias eram frequentemente oferecidas a estados aliados e príncipes, ou a condottieri como recompensa do seu valor. A juntar aos leões, os Florentinos começaram muito cedo a manter leopardos, para os quais foi nomeado um tratador especial. Borso de Ferrara costumava pôr o seu leão a lutar com touros, ursos e javalis selvagens.
Pelo final do século XV, todavia, verdadeiras instalações destinadas a albergar as colecções de animais (serragli), agora julgadas parte integrante dos equipamentos adequados a uma corte, eram mantidas por muitos dos príncipes. ‘Pertence à posição do magnânimo’, diz Matarazzo, ‘manter cavalos, cães, mulas, falcões, e outros pássaros, bobos da corte, cantores, e animais estrangeiros’. As jaulas de animais em Nápoles, ao tempo de Ferrante, possuíam até uma girafa e uma zebra, presenteados, ao que parece, pelo governador de Bagdade. Filippo Maria Viscontti possuía não apenas cavalos que lhe haviam custado 500 ou 1,000 moedas de ouro cada, e valiosos cães ingleses, mas um número de leopardos trazidos de todas as partes do Leste; a despesa com os seus pássaros de caça, que eram capturados dos países da Europa Setentrional, ascendia a 3,000 moedas de ouro por mês.  O rei D. Manuel o Venturoso de Portugal sabia bem o que estava a fazer quando presenteou Leão X com um rinoceronte e um elefante. Foi sob estas circunstâncias que os fundamentos de uma zoologia e botânica científicas foram assentes. pp. 188-189
(...) O famoso cardeal Ippolito Medici, bastardo de Giuliano, Duque de Nemours, mantinha na sua estranha corte uma tropa de bárbaros que falavam nada menos do que vinte línguas diferentes, e que eram todos eles perfeitos espécimens das suas raças. Entre eles havia incomparáveis voltigeurs do melhor sangue dos Mouros Norte Africanos, arqueiros Tártaros, lutadores Negro, mergulhadores Indianos, e Turcos, que geralmente acompanhavam o cardeal nas suas expedições de caça. p. 190

O mais completo e instrutivo tipo da tirania do século XIV encontra-se sem dúvida entre os Visconti de Milão, desde a morte do arcebispo Giovanni em diante (1354). A aparência familiar que se revela entre Bernabò e o pior dos Imperadores Romanos não concede espaço para erros: o mais importante objecto público era a caça aos javalis do príncipe; quem interferisse com ela era condenado à morte com tortura, as pessoas aterrorizadas eram forçadas a manter 5,000 cães de caça ao javali, com estrita responsabilidade pela sua saúde e segurança. p. 8

Em Giangaleazzo [sobrinho de Bernabò] essa paixão pelo colossal que era comum à maioria dos déspotas revela-se na maior das escalas. Ele empreendeu, com o custo de 300,000 florins de ouro, a construção de diques colossais, para desviar em caso de necessidade o Mincio de Mântua e o Brenta de Pádua, e assim tornar essas cidades desprovidas de defesa. Não é impossível, na verdade, que ele tenha pensado em drenar as lagoas de Veneza. Fundou esse que foi o mais belo de todos os conventos, a Certosa de Pavia, e a catedral de Milão, ‘que excede em beleza e esplendor todas as igrejas da Cristandade’. O palácio em Pavia, que seu pai Galeazzo tinha iniciado e ele próprio concluiu, era provavelmente de longe o mais magnificente dos aposentos principescos da Europa. Para aí transferiu a sua famosa biblioteca, e a grande colecção de relíquias dos santos, na qual depositava uma fé peculiar. pp. 8-9   

Nenhum outro ornamento estava mais em voga do que o cabelo artificial, frequentemente feito de seda branca ou amarela*. A lei denunciava e proibia-a em vão, até que alguns pregadores do arrependimento tocaram as mentes mundanas daqueles que as usavam. Viu-se então, no meio da praça pública, uma pira altíssima (talamo), na qual, para além de alaúdes, caixas de dados, máscaras, amuletos, livros de canções, e outras vaidades, jaziam pilhas de cabelo falso, que as chamas purgativas em breve reduziriam a um monte de cinzas. A cor ideal procurada para cabelo quer natural quer artificial era o loiro. E como se supunha que o sol tivesse o poder de tornar o cabelo desta cor, muitas senhoras passariam o tempo inteiro ao ar livre nos dias de sol. Tinturas e outros preparados eram usados com o mesmo propósito. Para além de todos estes, encontramos uma lista interminável de águas de beleza, gessos, e tintas para cada uma das partes da face – até para os dentes, e pálpebras – os quais não podemos hoje conceber. p. 240
* Pedaços de cabelo verdadeiro eram chamados cappeli morti. Para um exemplo de falsos dentes, feitos em marfim, e usados, embora apenas para efeito de clara articulação, por um prelado italiano, ver [...] [nota 87, p. 373]

Também o uso de perfumes ultrapassou todos os limites do razoável. Eles eram aplicados em tudo com que os seres humanos entravam em contacto. Nos festivais até as mulas eram tratadas com essências e unguentos, e Pietro Aretino agradece a Cosme I por um maço de dinheiro perfumado.
Os italianos desses dias viviam na crença de que eram mais asseados do que outras nações. De facto há razões gerais que falam mais a favor do que contra esta reivindicação. O asseio é indispensável à nossa noção moderna de perfeição social, que se desenvolveu em Itália antes de qualquer outro lado. (...) De qualquer modo é certo que a limpeza e asseio invulgares de alguns distintos representantes do Renascimento, especialmente no seu comportamento às refeições, foi notada expressamente*, e que ‘Alemão’ era o sinónimo em Itália para tudo o que era imundo. p. 241
* O uso de lenços de bolso estava quase generalizado entre as senhoras de Veneza, à aproximação do final do século XVI. [...] o lenço de bolso ou fazzoletto já é mencionado por um escritor Judeu-Italiano do século XIII. [nota 89, p. 373]

No que diz respeito aos assaltos, Itália, especialmente nas províncias mais afortunadas, certamente não era mais, e provavelmente menos, perturbada do que os países do Norte. Mas as figuras que se nos deparam são características do país. Teria sido difícil, por exemplo, encontrar em qualquer outro lado o caso de um padre, gradualmente conduzido pela paixão de excesso em excesso, até por fim se tornar o cabecilha de um bando de salteadores. Essa época oferece-nos este exemplo entre outros. A 12 de Agosto 1495, o padre Don Niccolò de’ Pelegati de Figarolo foi encerrado numa jaula de ferro no exterior da torre de San Giuliano em Ferrara. Ele tinha por duas vezes celebrado a sua primeira missa; da primeira vez tinha no mesmo dia cometido um assassínio, mas posteriormente recebera absolvição de Roma; tinha então morto quatro pessoas e desposado duas mulheres, com quem viajou. Posteriormente tomou parte em vários assassinatos, violou mulheres, arrastou outras à força, pilhou por toda a parte, e infestou o território de Ferrara com um bando de seguidores em uniforme, extorquindo comida e abrigo por toda a espécie de violência. Quando pensamos no que tudo isto implica, a massa de culpa na cabeça deste único homem é algo de tremendo. O clero e monges tinham muitos privilégios e pouca fiscalização, e entre eles havia sem dúvida muitos assassinos e outros malfeitores – mas dificilmente um segundo Pelegati." pp. 292-293.

Jacob Burckhardt
The Civilization of the Renaissance in Italy
Phaidon
506 págs.
5 estrelas

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Giuseppe Tomasi di Lampedusa por Edmund White (da NYRB)


"O sempre encantador e por conseguinte elegante Gioacchino Lanza Tomasi, que costumava liderar o Instituto Cultural Italiano na Universidade de Nova Iorque, convidou-me a ver a biblioteca de Lampedusa. Gioacchino conheceu Giuseppe Tomasi, o 11.º Príncipe de Lampedusa, quando era um adolescente, e o velho príncipe sem filhos acabou por adoptá-lo. O palácio ergue-se num terraço coberto de flores e à sombra de palmeiras, que dá para o porto de Palermo. No interior há vastos salões, iluminados por lustres venezianos; um deles contém a biblioteca astronómica do antepassado do século XIX que serviu de modelo a O Leopardo, o romance clássico de Lampedusa, publicado em 1958, sobre o declínio da aristocracia siciliana no final do século XIX. Noutra sala há livros em várias línguas (sobretudo italiano, francês e inglês) que Lampedusa lia vezes sem conta. «Ele não tinha muitos livros», diz Gioacchino. «Apenas uns seis mil, mas conhecia-os bem. Um pouco como Montaigne»

Lampedusa era casado com uma baronesa do Báltico, Licy, que tinha o seu próprio castelo, Stomersee, em Riga. Durante a década de 1930 o príncipe e a princesa raramente estavam juntos, por isso trocaram centenas de cartas, as quais Gioacchino está agora a preparar lentamente para publicação. Também elas estão escritas em italiano, francês e alemão e falam longamente sobre as suas doenças reais e sobretudo imaginárias e os seus adorados cães. As invasões alemã e depois russa da Letónia obrigaram-na a mudar-se para Roma e depois para a Sicília, onde exerceu psicanálise com a pequena nobreza local. Ela tinha horárias completamente diferentes dos do marido, que gostava de acordar cedo. Licy acordava por volta das onze e preparava-se para um longo dia de tratamentos aos pacientes.

À noite ela e o príncipe iam ao cinema, ou ouviam gravações de Wagner, ou comiam uma das estranhas refeições dela. A princesa sentia tanta falta dos seus arenques com natas que marinava os arenques secos locais em leite por vários dias até começarem a borbulhar, o que a mantinha num estado constante de diarreia. O príncipe refugiava-se nos seus cafés de eleição, onde podia comer uma refeição decente e encontrar os seus amigos jovens e cultos e trabalhar, durante os três últimos anos de vida, n'O Leopardo. Aos jovens ele dava palestras sobre literatura que mais tarde seriam publicadas; também publicou histórias e livros sobre Stendhal e a liteartura do francesa do renascimento. Finalmente tinha conseguido escapar à preguiça do Sul.

Infelizmente não viveu o suficiente para ver o seu livro publicado, o único fruto importante de uma vida inteira de leituras e conversas. O seu palácio está cheio de objectos que lembram o livro - o telescópio no terraço e as pinturas de antepassados por toda a parte, incluindo um grupo de santos da família! Sim, vários membros desta família eram santos, ou pelo menos beatos, incluindo uma piedosa senhora de aspecto doente chamada Maria Crocifissa. Outra recordação do livro é o próprio Gioacchino, que serviu de modelo para a aparência e désinvolture do jovem herói, o atrevido Tancredi."