quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Um belo poema de Natália Correia

Acabo de ouvir na rádio (no programa A Vida Breve, na Antena 2), este poema de Natália Correia, dito pela própria. 'Canaliza', se assim posso dizer, uma visão do mundo muito própria de Natália, uma sensualista que não nega o mistério nem o espírito, antes os mistura com a carne.

Talvez deva confessar que há aspectos da personalidade de NC com que não simpatizo, mas não há como negar que a sua poesia possui uma fecundidade assombrosa. E é revelador que este fosse um dos poemas da vida de Mário Soares, também ele um homem que apreciava os prazeres da vida.


Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.





quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O chão debaixo dos nossos pés









Mais cedo ou mais tarde, todos acabaremos por ir parar lá a baixo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Axel Munthe, excertos de O Livro de San Michele

 «Os macacos gostam de rir de nós, mas a menor suspeita de troça da nossa parte irrita-os profundamente. Nunca devemos rir-nos de um macaco, porque não o podem suportar». p. 64

(Um longo parêntesis: 

O meu amigo Jorge Sande Lemos contava que o tio, que era diretor dos caminhos de ferro de Angola, certa vez em Benguela foi convidado para jantar em casa de um português lá radicado, provavelmente negociante. Para o prevenir, esse homem explicou-lhe que tinha um chimpanzé, creio, como criado, que ia servir à mesa. O convidado que não estranhasse - mas, sobretudo, que nunca se risse dele.


Excerto de entrevista do jornal Sol a Maria da Paz, tratadora de primatas do Jardim Zoológico:

Ouvi uma vez uma história de um homem, em África, que tinha um chimpanzé como criado, vestido a rigor, que servia à mesa e tudo. É possível treinar um primata a esse ponto?

Ter um chimpanzé vestido como criado, sim. Ter um chimpanzé treinado para levar coisas à mesa, sim. Agora, fazer uma refeição completa, já não acredito. Provavelmente teria um chimpanzé vestido como criado e se calhar levou alguma coisa à mesa. Não acredito que tenha levado tudo. Apesar de serem treinados, os chimpanzés não têm perfil submisso a esse ponto. Mas isso é uma situação muito estranha. Hoje em dia ainda há pessoas que dizem com orgulho que têm saguins e cercopitecos em casa. É horrível. Os animais têm de viver uns com os outros. Nós nunca vamos ter a capacidade de lhes dar o que eles precisam. O cão foi domesticado há milhares de anos e mesmo assim às vezes há problemas, quanto mais um animal selvagem.

Segundo a história que ouvi, o dono do chimpanzé dizia aos seus convidados: ‘Por favor, ajam com naturalidade, nunca se riam dele’. O escritor Axel Munthe também disse que os macacos gostam muito de se rir de nós, mas não gostam nada que as pessoas se riam deles. Isso é verdade?
Há uma coisa que é mostrar os dentes, que para nós é rir e para eles é um comportamento agressivo. ‘Estou-te a mostrar os dentes porque te vou morder. Vê como tenho dentes grandes para te morder’. Portanto, se eu me rir para ele, ele vai-se comportar como com os outros da sua espécie, pode-se tornar agressivo. Ele está a ler que é um comportamento da ameaça. Se eles se riem de nós? É preciso ter uma intimidade muito grande com os animais para perceber que eles se riem de nós – e não se riem como nós nos rimos, mas às vezes fazem determinadas coisas mesmo para nos chatear.)


Voltando a Axel Munthe e ao seu Livro de San Michele:

«A insónia não mata um homem, se este não se mata a si mesmo, e a falta de sono é uma das causas mais frequentes do suicídio. Mas mata a alegria de viver, mina as suas forças, suga-lhe o sangue do cérebro e do coração, como um vampiro. Lembra-lhe, de noite, o que o sono benéfico lhe deveria fazer esquecer. Faz-lhe esquecer, de dia, aquilo de que se devia lembrar.» p. 212

E ainda:

«Norstrom dizia sempre que eu tinha dois cérebros, que funcionavam alternadamente na minha cabeça: o cérebro bem desenvolvido dum imbecil e o cérebro mal desenvolvido duma espécie de génio.» p. 210


Axel Munthe em Capri, 1888-89


The precociously bright son of a Swedish pharmacist, Axel Munthe worked under Jean Martin Charcot, and in 1880, became the youngest doctor in French history. By the 1890s, he was world-famous for his healing powers, believed by some to be supernatural. He moved in the most colourful and exalted circles of fin de siecle Europe, counting amongst his friends Henry James, Howard Carter, Rainer Maria Rilke, Lady Ottoline Morrell and Count Zeppelin. Though physician to the Swedish court, where he became the lover of the Crown Princess Victoria, Munthe was more at home with nature than with people. He travelled through remotest Lapland, as well as across Europe, and his great love was animals, whom he went to great lengths to protect. In 1929 he published 'The Story of San Michele', an account of his life, shot through with his love for Italy and Capri, where he built a bird sanctuary and the house of his dreams, the Villa San Michele. The book became an international best seller, translated into 40 languages, and has become one of the classics of the last century.


Agora o saboroso epílogo desta história.

Uma bela quinta-feira, estava eu a chegar ao escritório, abro a porta e, na sala que antecede o meu gabinete, estava sentado JSB, o administrador. «Estou a fazer-lhe uma espera». Ri-me. «Não, estou mesmo. É que a minha mãe leu a sua crónica sobre o macaco, e diz que o macaco era da avó dela.» Não queria acreditar.

Tratava-se então de uma senhora argentina, viúva, que fez um cruzeiro onde conheceu um senhor português, e casaram-se em segundas núpcias. Em casa (presumo que em Benguela) tinham um chimpanzé, o Pepe, que servia à mesa e até tinha uma farda toda catita. JSB mostrou-me uma foto dele vestido (mas não com a farda de servir), a fumar. «Também ninguém se podia rir dele, ficava muito zangado e partia os pratos» (exatamente como me contou o Jorge Sande Lemos). «Mataram-no, porque achavam muita graça a vê-lo fumar, então davam-lhe cigarros. E bagaço. E ele ganhou o vício da bebida». Exatamente como Billy, o saguim de Axel Munthe, que se tornou alcoólico.

crónica no Nascer do SOL, 21/XI/2024

O chimpanzé que servia à mesa

Ao lançar o convite para jantar, o anfitrião fez um aviso: o convidado que não estranhasse ele ter um chimpanzé por criado, mas sobretudo que nunca se risse dele.

José Cabrita Saraiva

Tive em tempos a pretensão, entretanto abandonada, de escrever um livro de contos sobre homens e animais que reunia alguns episódios verídicos que fui ouvindo aqui e ali. A linha condutora eram as relações que transcendiam a barreira – real, convencionada ou imaginária – que nos separa das outras espécies. Havia a história dos pescadores chineses que usam corvos marinhos na faina e que para os domesticarem dormem com as crias nas primeiras semanas de vida destas, numa simbiose perfeita; a história de um caseiro que conseguia comunicar com os animais e que nunca tomava banho – certa vez em que foi obrigado a tomar, apanhou uma pneumonia e quase ia desta para melhor; a história de um polvo do Oceanário que se apaixonou pela sua tratadora, que graças aos seus cuidados conseguiu recuperá-lo quando ele se encontrava doente, mas, ao regressar ao seu país, provocou-lhe um desgosto tal que ele fugiu do aquário e acabou por morrer; e ainda a história de um pombo com uma asa partida que foi tratado por uma família mas acabou dentro de uma panela, transformado numa bela canja. Repito: todas estas histórias são reais.

Esqueci-me de referir talvez a mais curiosa, que me contou o meu amigo Jorge Sande Lemos quando trabalhávamos no Mosteiro dos Jerónimos. O seu tio, que julgo que era diretor dos caminhos de ferro de Angola, certa vez em Benguela foi convidado para jantar em casa de um português lá radicado, provavelmente um negociante. Aceitou de bom grado. Mas, p ara que ele não fosse apanhado de surpresa, o homem explicou-lhe que tinha como criado um chimpanzé, se não me engano, que ia servir à mesa. O convidado que não estranhasse – mas, sobretudo, que nunca se risse dele, pois isso poderia levar a um comportamento agressivo por parte do animal. Tanto quanto sei, o chimpanzé serviu mesmo à mesa e até estaria fardado. O convidado comportou-se com a naturalidade possível e a refeição passou-se sem sobressaltos.

Ainda acalentava o projeto de escrever esse livro de contos quando li O Livro de San Michele, de Axel Munthe (1859-1949), o médico e psiquiatra sueco, discípulo de Charcot e de Pasteur, que havia quem considerasse que tinha poderes de cura sobrenaturais. E recordei-me da história do chimpanzé que servia à mesa e do aviso do seu proprietário ao cruzar-me com esta passagem: «Os macacos gostam de rir de nós, mas a menor suspeita de troça da nossa parte irrita-os profundamente. Nunca devemos rir-nos de um macaco, porque não o podem suportar».

Um dia, quando entrevistei Maria da Paz, tratadora de primatas do Jardim Zoológico há cerca de trinta anos, perguntei-lhe se era possível um chimpanzé servir à mesa – não que duvidasse da palavra do meu amigo! «Provavelmente teria um chimpanzé vestido como criado e se calhar levou alguma coisa à mesa», respondeu-me. Portanto sim, era possível. Quanto ao facto de os macacos não gostarem que nos riamos deles, tem uma explicação simples: «Há uma coisa que é mostrar os dentes, que para nós é rir e para eles é um comportamento agressivo. ‘Estou-te a mostrar os dentes porque te vou morder. Vê como tenho dentes grandes para te morder’. Portanto, se eu me rir para ele, ele vai-se comportar como com os outros da sua espécie, pode-se tornar agressivo.

Só tempos mais tarde vim a descobrir que Axel Munthe tinha escrito também um livro chamado Homens e Bichos, o título que eu gostaria de dar ao meu. O médico sueco era um grande amante e defensor dos animais – tendo chegado ao ponto de comprar uma montanha por trás da sua villa em Capri para aí fazer um santuário para os pássaros. Entre os seus animais de estimação contavam-se vários cães e gatos, que passeavvam livremente entre as estátuas da Antiguidade que Munthe também colecionava, uma coruja, um mangusto e até um babuíno chamado Billy. Este, ao contrário do chimpanzé de Benguela, portava-se mal, tinha um problema com o álcool e não consta que servisse à mesa.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Irma Grese, a «bela fera de Belsen»

Excerto de Os cúmplices de Hitler - os rostos do Terceiro Reich, de Richard J. Evans (Edições 70)

«Tendo em conta a natureza masculina radical do regime nazi, não é de admirar que poucas mulheres tenham ido a tribunal. Algumas alcançaram muita notoriedade, mas não tanta como Ilse Koch. Uma das
mais notórias foi Irma Grese, que a imprensa alcunhou de «bela fera de Belsen», «rainha do gangue de Belsen», «monstro louro» e «mulher de Satã». «Era uma das mulheres mais bonitas que alguma vez vi», testemunhou Gisella Perl, uma ex-prisioneira que tinha sido médica em Auschwitz: «Tinha um corpo perfeito, o rosto era claro e angélico, e os olhos azuis eram os mais alegres e inocentes que se podem imaginar. Mas Irma Grese foi a pessoa mais depravada, cruel e criativamente perversa que alguma vez encontrei.»

Grese destacou-se entre os réus do julgamento dos guardas e funcionários do campo de concentração de Bergen-Belsen, cuja descoberta pelas forças britânicas, em 15 de abril de 1945, chocou e horrorizou o
mundo. O campo continha cerca de 60 mil presos famintos e cheios de doenças, no meio de 13 mil cadáveres por enterrar; 14 mil dos sobreviventes estavam tão debilitados que morreram nas semanas seguintes. Grese permaneceu no campo, aparentemente convencida de que nada tinha a recear dos representantes dos Aliados. Porém, dois dias após a chegada dos britânicos, foi presa. Depois de ser obrigada a auxiliar no enterro dos cadáveres, foi transferida para uma prisão na cidade de Celle, onde ficou a aguardar julgamento por um tribunal militar britânico que se reuniu em Luneburgo, juntamente com o comandante do campo, Josef Kramer, e outros quarenta e três réus. Cerca de 2 mil jornalistas e observadores assistiram à leitura das acusações, que incluíram a participação voluntária num «sistema de homicídio, brutalidade, crueldade e negligência criminosa». Muitos dos réus, incluindo Grese, tinham servido em Auschwitz e tinham sido retirados para Belsen devido à aproximação do Exército Vermelho.


Grese admitiu ter obrigado os prisioneiros a ficarem de pé durante horas nas contagens matinais e que, em Auschwitz, andava com uma chibata com a qual lhes batia. «Era um chicote muito leve», afirmou em tribunal, «mas, quando eu batia com ele em alguém, doía.» O comandante do campo proibiu-a expressamente de usar a chibata, mas Grese usava-a quando descobria um detido a roubar alguma coisa ou quando as suas ordens eram ignoradas. Também confessou que andava armada e que espancara prisioneiros com uma bengala e com a mão enluvada. Alguns ex-presos de Auschwitz testemunharam que a tinham visto matar a tiro uma judia húngara de trinta anos sem a mínima provocação. Outra testemunha contou ao tribunal que a sua «ocupação favorita era bater-lhes e pontapeá-los com as suas botifarras depois de caírem ao chão». Um ex-prisioneiro polaco relatou que Grese tinha acompanhado,
na sua bicicleta e com um cão, um destacamento de trabalho que teve de caminhar ao longo de cerca de dezasseis quilómetros para apanhar ervas para a cozinha do campo. Alguns presos caíram, por estar
fracos e malnutridos, e Grese atiçou-lhes o cão. Ao ser contrarinterrogada, disse que nunca tivera um cão, mas admitiu ter forçado um destacamento de trabalho a correr à volta do campo por «desporto,
como punição pelo roubo, por desconhecidos, de alguma carne da cozinha do campo. Alguns detidos colapsaram, exaustos, mas Grese negou que alguém tivesse morrido. Em Auschwitz, Grese auxiliou o médico do campo, Josef Mengele, a selecionar prisioneiros para as câmaras de gás, que Grese sabia que estavam à sua espera. «Quando alguma fugia», disse o advogado de acusação, «você apanhava-a e
espancava-a.» «Sim», respondeu ela. Quando lhe perguntaram se obrigava os presos a ajoelharem-se quando se portavam mal na contagem ela anuiu.»

pp. 463-464


capa de Os cúmplices de Hitler, de Richard J. Evans (Edições 70) 


Poucas pessoas ouviram falar em John Woolman (e o que é a Edonomia)

 Excerto do livro História para amanhã, de Roman Krznaric (edições 70)

«Poucas pessoas ouviram falar em John Woolman. Nascido em Nova Jérsia em 1720, Woolman era membro da Sociedade Religiosa dos Amigos, uma seita protestante radical mais comummente conhecida como os quacres. Os quacres distinguiam-se pela rejeição da ideia de um clero ordenado, pelo que podiam ter uma relação direta com Deus, e pela sua dedicação à promoção da justiça social. Mas eram também defensores de uma vida simples ou daquilo a que se referiam como «singeleza», materializada num conjunto de regras que ainda hoje vigoram, o chamado «Testemunho de Simplicidade».

Os quacres como Woolman usavam roupas escuras feitas de tecido sem tingimento e rejeitavam ornamentos vistosos como fivelas, rendas ou fitas. Minimizavam os bens materiais, preferindo poucos móveis de madeira a colchões estofados e cortinas de veludo. Comiam alimentos simples e até falavam com simplicidade, evitando títulos honoríficos referindo-se aos dias da semana como «Primeiro Dia», «Segundo Dia» e por aí fora.

No início do século XVIII, muitos quacres estavam incomodados com o número crescente dos seus confrades que andavam a quebrar as regras - de que era exemplo o próprio fundador da Pensilvânia,
William Penn, que vivia numa casa majestosa e tinha uma predileção por ótimos vinhos e por cavalos puro-sangue. Na década de 1740, Woolman encabeçou um movimento para devolver o quacrismo às suas raízes espirituais e éticas de singeleza e piedade. Viajou incansavelmente pelo país, pregando as virtudes da simplicidade e incitando os outros quacres a combater injustiças como a escravatura, tema acerca do qual publicou numerosos ensaios.

PORTRAIT OF JOHN WOOLMAN The original sepia drawing on a large folio sheet from which this reproduction has been made is almost certainly the work of John Woolman's friend and contemporary, Robert Smith III, of Burlington, New Jersey, son of Daniel (d. 1781), and grandson and namesake of the well known Judge Robert Smith of the Court of Common Pleas, Burlington County (1769 &c). Robert Smith III married Mary, daughter of Job Bacon, of Bacon's Neck, N. J. He had a natural gift for seizing a likeness and has left a large collection of striking sketches. The technique is identical with this sketch, which, however, is more ambitious, and the erratic background is omitted. The medal of the British and Foreign Anti-Slavery Association, founded in 1787 by Thomas Clarkson, which appears in the original, goes to prove this a memory sketch, as are many of Robert Smith's portraits, and also furnishes corroborative evidence of its genuineness. The original was in possession of the late Governor Samuel W. Pennypacker, whose endorsement is on the reverse, and whose accurate judgment was seldom at fault. It was sold with the contents of his library in 1908 and came later into the hands of the present owner, George Vaux, Jr., of Bryn Mawr, Pa., to whom are due the editor's thanks for the privilege of reproduction.

Não sendo nem um grande orador nem um intelecto brilhante a principal razão para a sua fama era, segundo um historiador, a de ser «o mais nobre exemplo de vida simples que a América alguma ver

produziu». Woolman transformou a vida simples num desporto radical. Depois de se estabelecer como comerciante de tecidos, para obter meios de subsistência, deu por si a ganhar tanto dinheiro que tentou reduzir os seus lucros pedindo aos clientes que comprassem menos tecidos e de peças mais baratas - o que não é algo que nos ensinem na Harvard Business School. Por fim, em vez disso, passou a tratar de um pomar de macieiras. Woolman foi também pioneiro do comércio justo, boicotando os artigos de algodão produzido em plantações com escravos e insistindo em pagar diretamente, com moedas de prata, aos criados escravizados das casas que visitava. E também era um vegetariano praticante. Certa vez, sendo-lhe oferecida carne de aves, respondeu: «O quê? Querem que eu coma os meus vizinhos?». Ao viajar como missionário para Inglaterra, em 1771, Woolman ficou tão incomodado com luxo da sua cabina navio que decidiu dormir, durante as seis semanas seguintes, no húmido e sujo convés, com os marinheiros. Ao chegar a Inglaterra, decidiu visitar York, onde planeava observar, em primeira mão, as pobres condições sociais do país. Mas, ao ouvir dizer que teria de viajar numa carruagem puxada por cavalos, Woolman decidiu evitar essa crueldade para com os seus irmãos equinos, preferindo, em vez disso, ir a pé - mais de duzentas milhas. Por fim, chegou a York, mas nunca mais de lá saiu. Enquanto ali esteve, apanhou uma dose mortal de varíola e foi enterrado numa campa de mendigo.»  pp. 71-73


E agora sobre o Japão:

«Edonomia: a sustentabilidade profunda no Japão pré-industrial

Imaginem que se encontram na velha ponte de madeira de Nihonbashi, no coração comercial de Edo, a antiga cidade japonesa agora conhecida como Tóquio. Estamos mais ou menos no ano 1750, no
período Edo, a época que foi de 1603 a 1868, governada pelos xoguns Tokugawa. Vemo-nos rodeados de um burburinho de moradores que conversam enquanto giram as sombrinhas, de comerciantes de marisco que se apressam a atravessar a ponte, a equilibrar cestos transbordantes aos ombros, e de trabalhadores que transportam arroz e tecidos para as bancas do mercado em ambas as margens do rio. O cheiro vindo do famoso Nihonbashi Uogashi - o mercado do peixe - flutua no ar. Olhamos para o Sol nascente, à distância, no horizonte da baía de Edo.

O Japão governado pelos Tokugawas estava isolado do resto do mundo: numa tentativa de se proteger da influência dos missionários cristãos e das potências ocidentais, o regime tinha cortado a maior parte
das relações comerciais internacionais e proibido as viagens para terras estrangeiras. Mas isso não impediu Edo de se tornar uma cidade colossal, com mais de um milhão de habitantes. Esta era dominada pelo Castelo de Edo e pelas residências dos samurais e dos senhores regionais, ou dáimios. As shomin - as pessoas comuns - viviam, sobretudo, a leste do castelo, sendo grande parte do resto da cidade ocupada por templos e outros edifícios religiosos.




Depois de ter sido devastada pelo incêndio de Meireki, em 1657, quando se estima que cem mil pessoas tenham morrido, Edo continuou a ser uma cidade de madeira, das casas aos templos e dos barcos às pontes.

Mas, olhando atentamente, Edo tinha algo de ainda mais notável: era uma cidade sem desperdício. Quase tudo era reutilizado, reparado, reaproveitado ou, em última instância, reciclado - aquilo a que, hoje em dia, chamaríamos uma economia circular. A economia de Edo «funcionava como um muito eficiente sistema em circuito fechado», defende Eisuke Ishikawa, historiador da sustentabilidade. Um yukata tradicional - um simples quimono de verão, feito de algodão - era usado até o tecido começar a ficar desgastado, altura em que se tornara suficientemente macio para ser transformado num pijama. A fase seguinte da sua vida era como fralda, que podia ser lavada repetidamente, após o que se poderia tornar um pano de lavar o chão, antes de, por fim, ser queimado como combustível. O algodão era tão precioso que foi desenvolvida uma tradição de retalhos, a chamada boro - literalmente, trapos esfarrapados -, em certas partes do Japão, com os aldeões pobres a reunir fragmentos de pano deitados fora e a coserem-nos formando casacos e outras peças de roupa, que eram passadas de geração em geração. Tudo era recolhido para ser reutilizado - os pingos de cera das velas eram novamente moldados, as antigas panelas de metal eram derretidas, o cabelo humano era vendido a fabricantes de perucas. A conceção modular das casas significava que as tábuas do soalho podiam ser facilmente removidas, aplainadas e reutilizadas em novos edifícios. Os samurais em maré de azar reparavam sombrinhas. A palha que sobrava do cultivo do arroz era usada para fazer sandálias e cordas, para embrulhar utensílios domésticos e, por fim, como fertilizante e combustível. A reciclagem de papel era uma enorme indústria - inclusive, reciclava-se o papel higiénico, que era feito das resistentes fibras das
cascas de árvore. Uma pessoa não pagava a calhandreiros para levarem os dejetos humanos - eles é que lhes pagavam e, depois, vendiam a sua preciosa carga como fertilizante agrícola. Embora esta economia circular funcionasse em todas as ilhas do Japão, o seu maior desenvolvimento ocorreu na cidade de Edo, onde havia mais de mil negócios de restauro e reciclagem.

Esta cultura de profunda sustentabilidade era reforçada por extensa regulamentos que visavam a gestão da escassez de recursos, especialmente quanto à madeira. A economia do Japão dependia tanto da madeira quanto, hoje em dia, dependemos dos combustíveis fósseis. Quando os xoguns Tokugawa tomaram o poder, viram-se confrontados com um grave carência desse precioso recurso: os antigos terrenos arborizados tinham sido tão drasticamente depauperados - em parte, devido ao crescimento demográfico - que havia uma verdadeira ameaça de colapso económico. De acordo com o historiador ambiental Conrad Totman, «o atual Japão deveria ser uma sociedade rural empobrecida e repleta bairros de lata, subsistindo com base numa paisagem lunar erodida, não como uma sociedade abastada, dinâmica e altamente industrializada que vive num arquipélago luxuriantemente verde».

O regime regulatório Tokugawa, que lhes permitiu evitar esse destino, teve início com a proibição do desmatamento, incluindo limites ao abate de árvores de certos tamanhos e de certas espécies, de modo
que se permitisse a regeneração da floresta. As multas eram significativas e, nalgumas regiões, infringir as regras era punível com a morte. Havia também restrições ao tipo de ferramentas que podiam ser usadas para desmatar e à quantidade de lenha que os aldeões podiam recolher. Estas medidas eram combinadas com um sistema abrangente de racionamento da madeira. Foram introduzidos decretos que limitavam o tipo, o tamanho e o número de pedaços de madeira que podiam ser usados na construção de casas e de outros novos edifícios. As regras do racionamento estavam intimamente ligadas ao estatuto: os que se achavam mais acima na hierarquia social, como os samurais e os nobres, tinham autorização para usar mais madeiras raras e podiam construir casas maiores, mas também eles se deparavam com restrições. Embora as regras de racionamento da madeira fossem, por vezes, desrespeitadas, foram um instrumento político crucial, que «comprou tempo» para a regeneração dos terrenos arborizados, defende Totman.

Estas restrições negativas do lado da procura eram combinadas com uma abordagem positiva do lado da oferta: os Tokugawas enveredaram por um dos mais extensos programas de plantação florestal a que o mundo alguma vez assistiu. Embora se tratasse de uma política de cima para baixo, imposta pelo xogunato reinante, esta estava altamente dependente do envolvimento das populações rurais. Conquanto alguns nobres regionais usassem mão de obra escrava, com o passar do tempo desenvolveu-se uma série de estruturas de incentivo, como a oferta de pagamentos em dinheiro aos aldeões para plantação de novas árvores. As florestas arrendadas tornaram-se mais comuns, muitas vezes sob a forma de nekiyama, na qual um aldeão plantava um local e vendia antecipadamente a madeira a um comerciante. Os aldeões cultivavam as árvores e, quando estas eram abatidas, depois de várias décadas, eles podiam replantar o local e voltar a arrendar a terra. As assembleias das aldeias desenvolveram também novas regras para administrar as florestas comunitárias, conhecidas como wariyama, para assim ajudar a geri-las de maneira sustentável e a evitar litígios, e plantaram-se novas matas para proteger as terras da erosão e das inundações. Ao longo de um período de um século, com início por volta de 1750, foram plantadas árvores às dezenas de milhões, reflorestando a paisagem devastada.
Esta combinação de circularidade sustentável e regeneração dos recursos era a essência daquilo a que se chamou «Edonomia», que surgiu no Japão pré-industrial. O período Edo continua a ser um dos melhores exemplos históricos de como poderá ser uma economia regenerativa que funcione dentro de limites ecológicos seguros.»


capa de História para Amanhã, de Roman Krznaric (Edições 70(




terça-feira, 15 de outubro de 2024

Octavio Paz, Trabalhos do poeta (sobre a desaprendizagem)

 XIV

«Com dificuldade, avançando alguns milímetros por ano, abro um caminho entre as rochas. Há milénios que meus dentes se gastam e minhas unhas se quebram para chegar além, ao outro lado, à luz, ao ar livre. E agora que minhas mãos sangram e meus dentes oscilam, mal seguros, numa cavidade gretada pela sede e pela poeira, detenho-me para contemplar minha obra: passei a segunda parte de minha vida a partir as pedras, a perfurar as muralhas, a rachar as portas e a separar os obstáculos que interpus entre a luz e eu durante a primeira parte de minha vida.»

in Antologia Poética, ed. Círculo de Leitores, p. 41


O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998),
prémio Nobel da literatura em 1990


Dino Buzzati, excertos de O deserto dos tártaros

Imagem do filme O Deserto dos Tártaros, de Valerio Zurlini (1976)


«Estendido na cama estreita, fora do halo de luz do candeeiro a petróleo, enquanto fantasiava sobre a sua vida, Giovanni Drogo foi inesperadamente dominado pelo sono. E, contudo, justamente naquela noite - oh, se tivesse sabido talvez não tivesse vontade de dormir - justamente naquela noite principiava para ele a irremediável fuga do tempo.

Até então avançara pela despreocupada idade da primeira juventude , uma estrada que em crianças nos parece infinita, em que os anos passam devagar e com passos suaves, de modo que ninguém se apercebe da sua passagem. Caminha-se tranquilamente, olhando em redor com curiosidade, não é preciso ter pressa, ninguém atrás nos urge e ninguém nos espera, e também os nossos companheiros avançam sem preocupações, detendo-se amiúde para brincar. Das casas, às portas, a gente crescida saúda-nos benevolentemente e faz-nos sinal indicando o horizonte com sorrisos cúmplices; o coração começa assim a bater de desejos heróicos e ternos, saboreia-se a expectativa das coisas maravilhosas que nos aguardam mais adiante; não, ainda não se vêem, mas é certo, é absolutamente certo que um dia lá chegaremos.

Falta muito ainda? Não, basta atravessar aquele rio lá ao fundo, ultrapassar aquelas colinas verdes. Ou será que já chegámos? Não serão estas árvores, estes prados, esta casa branca, aquilo que procurávamos? Por alguns instantes temos a impressão de que sim e gostaríamos de ficar por ali. Depois ouvimos dizer que o melhor está mais adiante e fazemo-nos de novo à estrada sem esforço.

E assim se prossegue caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o Sol brilha alto no céu e parece nunca ter vontade de chegar ao ocaso.

Mas a certa altura, quase instintivamente, voltamo-nos para trás e vemos que uma cancela se fechou nas nossas costas, obstruindo-nos a via do regresso. Então sentimos que algo mudou, o Sol já não parece imóvel, desloca-se rapidamente ai de nós, nem temos tempo de o fixar pois já se precipita no confim do horizonte; apercebemo-nos de que as nuvens já não ficam estagnadas nos golfos azuis do céu, fogem encavalitando-se umas nas outras, tal é a sua urgência; percebemos que o tempo passa e que também a estrada um dia deverá terminar.»  pp. 50-51

O escritor Dino Buzzati

«Quase dois anos depois, Giovanni Drogo dormia, uma noite, no seu quarto da Fortaleza. Vinte e dois meses tinham passado sem trazer nada de novo, e ele ali ficara parado, à espera, como se a vida devesse ter para com ele uma tolerância especial. Contudo, vinte e dois meses são muito tempo e muitas coisas podem acontecer: dá tempo a que se formem novas famílias, nasçam crianças e comecem até a falar, para que surja uma grande casa onde antes só havia ervas, para que uma mulher bonita envelheça e já ninguém a deseje, para que uma doença, mesmo das mais longas, incube (e entretanto o homem continua a viver despreocupado), consuma lentamente o corpo, se retire durante breves aparências de cura para regressar com maior ímpeto sorvendo as últimas esperanças, resta ainda tempo para que o morto seja sepultado e esquecido, para que o filho seja capaz de rir de novo e à noite acompanhe as raparigas pelas alamedas e, leviano, junto ao gradeamento do cemitério.

A existência de Drogo, ao invés, tinha como que parado. Um dia igual, preenchido com as mesmas coisas, repetira-se centenas de vezes sem dar um passo em frente. O rio do tempo passava sobre a Fortaleza, abria rachas nas paredes, arrastava para baixo poeira e fragmentos de pedra, corroía os degraus e as correntes, mas passava em vão por cima de Drogo; ainda não conseguira agarrá-lo na sua fuga.» pp. 85-86

«Até que a neve nos terraços da Fortaleza se fez mole e os pés se afundavam nela como na lama. Das montanhas mais próximas chegou de repente o som doce das águas; aqui e ali, ao longo das fragas, avistavam-se tiras brancas verticais que cintilavam ao sol, e os soldados de vez em quando davam por si a cantarolar, como há meses não faziam.

O Sol já não corria tão veloz como antes, ansioso de se pôr; começava a deter-se um pouco no meio do céu, devorando a neve acumulada, e era inútil que as nuvens se precipitassem ainda dos gelos do norte: neve já não conseguiam deitar, apenas chuva, e a chuva mais não fazia do que derreter a pouca neve que restava. O estio estava de volta.

Já se ouviam de manhã trinados de pássaros que todos julgavam ter esquecido. Em compensação, os corvos já não se reuniam no planalto da Fortaleza à espera dos restos das cozinhas, espalhando-se pelo vale em busca de comida fresca.

À noite, nas camaratas, as prateleiras onde se arrumam as mochilas, os armeiros onde estão as espingardas, as próprias portas, até os belos móveis de nogueira maciça no quarto do coronel, todas as madeiras da Fortaleza, incluindo as mais antigas, davam estalos no escuro. Por vezes eram estouros secos como tiros de pistola, parecia mesmo que qualquer coisa se partia; acordavam, nas tarimbas, e punham-se de orelha à escuta, mas nada mais ouviam do que outros estalos que bichanavam na noite.

Eis chegado o tempo em que nas velhas tábuas ressuscita uma pertinaz saudade da vida. Muitos anos antes, nos seus tempos felizes, eram um juvenil fluxo de calor e de força, dos ramos saíam-lhes feixes de rebentos. Depois a planta foi abatida. E agora, que é Primavera, desponta nelas um latejo de vida infinitamente menor. Em tempos folhas e flores; agora apenas uma vaga recordação, o bastante apenas para fazer crac e depois silêncio até ao ano que vem.»  pp. 155-6

«A porta de casa abriu-se e Drogo sentiu imediatamente o velho cheiro doméstico, como quando em criança regressava à cidade após os meses de Verão passados na casa de campo. Era um cheiro familiar e amigo, todavia, passado tanto tempo, havia nele um não-sei-quê de tristeza. É certo que lhe recordava já distantes, a doçura de certos domingos, os jantares animados, a meninice perdida, mas falava também de janelas fechadas, de deveres escolares, de limpeza matinal, de doenças, de discussões, de ratos.» p. 161

capa da edição portuguesa, da Cavalo de Ferro


Goebbels, Rosenberg, Strauss, Hindemith e Fürtwangler

O primeiro foi o Dr. Joseph Goebbels (1897-1945), ministro da propaganda de Hitler, que à imagem do seu líder se suicidaria quando já não havia esperança possível para o nazismo, arrastando consigo para a morte toda a família (mulher, cinco filhas e um filho), a 1 de maio de 1945. 





O segundo foi o grande ideólogo da raça Albert Rosenberg (1893-1946), rival de Goebbels, por este considerado, desdenhosamente, «um intelectual». O autor do livro que citamos em seguida chama-lhe «cão de guarda ideológico».






O terceiro foi o famoso compositor Richard Strauss (1864-1949), não o das valsas (com quem não tinha parentesco, apesar de partilharem o mesmo apelido), mas o de Assim Falava Zaratustra (e do hino dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936).






O quarto foi o compositor 'modernista' Paul Hindemith (1895-1963), que se tornaria cidadão americano.







O quinto foi o grande maestro Willhelm Furtwängler (1886-1954). titular da Filarmónica de Berlim durante mais de duas décadas.







Apresentações feitas, vamos a um excerto da excelente biografia de Goebbels por Ralf Georg Reuth que dá conta das intrigas no meio musical alemão durante o nazismo.

«Rosenberg attacked the composer Richard Strauss, probably the most significant figure in German music, a man with an international reputation whom Goebbels himself admired. Rosenberg asserted
that having this composer serve as president of the Reich Chamber of Music could result in a "cultural scandal," because Strauss was having the libretto of his opera Die schweigsame Frau (The Silent Woman) "written by a Jew" who served as "the artistic advisor to a Jewish emigré theater" in Switzerland. Rosenberg's attack made Goebbels "furious," the more so because Hess sided with Rosenberg. Goebbels took satisfaction in pointing out that Rosenberg had his facts wrong; Strauss's librettist was Stefan Zweig, "an Austrian Jew, not to be confused with the emigré Arnold
Zweig."

But the ideological watchdog stuck to Goebbels's trail. His next attack was directed against Paul Hindemith, who had been described in the journal Die Musik, published by Rosenberg's Cultural Community, as "not acceptable from the standpoint of cultural policy." Rosenberg now accused Hindemith of spending most of his time in the company of Jews and turning German music into kitsch, which made him unfit to belong to "the highest art institutes of the new Reich."49 Goebbels himself
had praised Hindemith in June as "one of the strongest talents in the younger German generation of composers," although he had to reject "the basic intellectual position that finds expression in most of his works up to this point."

Wilhelm Furtwängler, vice president of the Reich Chamber of Music, whom Goebbels regarded as an inspired conductor, came to Hindemith's defense in the Deutsche Allgemeine Zeitung. Demand for Furtwängler's article was so great that the paper had to reprint it. Furtwängler argued that, given the worldwide shortage of truly productive musicians, one could not cast aside a man like Hindemith. He asked a question, implicitly directed at Rosenberg: what would happen "if political denunciation were applied to the fullest extent in the arts?" The evening the article appeared, Goebbels and Goering happened to be at the Staatsoper. Furtwängler received long and pointedly enthusiastic applause. Goering apparently took this incident as the occasion to inform Hitler that a public expression of disapproval of a Reichsleiter had occurred. Goebbels for his part threatened Furtwängler, saying he "would show him which of them was stronger." Furtwängler thereupon resigned as vice president of the Reich Chamber of Music and director of the Staatsoper and decided, with heavy heart, to emigrate to the United States. The "Hindemith case" had thus broadened to become the "Furtwängler case," the case of the Reich Chamber of Music.

Officially it looked as though Rosenberg had won a complete victory in this instance. But then Furtwängler's plan of going to America was thwarted by his rival Arturo Toscanini, who publicly spoke out against him. With Hitler's approval Goebbels then used a combination of offers and threats to persuade Furtwängler to issue a sort of apology for his article." He said he had never intended to meddle in the Reich's cultural policy; such policy should be made "solely by the Führer... and by the
expert minister appointed by him." Goebbels had killed three birds with one stone: he had enabled Furtwängler to save face, frustrated Rosenberg, and kept this distinguished conductor in Germany. Goebbels probably had the last point in mind when he wrote in his diary, "a great moral success for us." But there remained "the troubling question of how we're going to keep him occupied."

Rosenberg continued to snipe. He demanded that Furtwängler apologize to him as well, for "his political attacks on the NS Cultural Community." Probably at Hess's urging, Furtwängler complied, after which Rosenberg directed his organization, which had no official party status, to "preserve strict neutrality toward Furtwängler." All the prerequisites seemed in place for an official reconciliation between the conductor and Hitler. In the end Furtwängler kept his old positions and in 1936 was
made musical director of the Bayreuth Wagner Festival.»

Ralf Georg Reuth, Goebbels - the life of Joseph Goebbels the mephistophelian genius of nazi propaganda, Constable, p. 202-203

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

As misteriosas runas

 No Tolstói de S. Zweig - livro fascinante, mais retrato psicológico do que biografia - deparei-me com uma frase em que mencionava «as rugas e as runas» do grande escritor.

Mas o que são runas? Confesso que não sabia. Tinha apenas a ideia de algo ligado a pedras e aos celtas.

Aqui vão alguns dados interessantes retirados do wiktionary:


Étymologie

(XVIIe siècle) Du vieux norrois rún (« rune »), par divers intermédiaires, où ce mot signifiait « secret murmuré » et « connaissance cachée ». Mais l'origine plus ancienne du mot rune demeure incertaine.

L'hypothèse majoritaire est qu'il viendrait du proto-celtique (puis du proto-germanique qui l'aurait importé tel quel) rūno- qui signifiait « secret, mystère, incantation, savoir secret, magie ».
On retrouve des variantes de ce mot avec des sens proches dans la plupart des langues celtiques et germaniques (dont : langues scandinaves) anciennes ou plus récentes. Toutes convergent vers l'idée que les runes constituent un système 
initiatique lié à la parole, d'où le composé gaulois comrunos, ou cobrunos « confident, initié (dans le secret) »

Une autre hypothèse a également été avancée : le mot pourrait venir d'une racine indo-européenne signifiant « creuser », en accord avec le fait que les runes étaient gravées.

Nom commun 

Singulier

Pluriel

rune

runes

\ʁyn\

Alphabet original des runes nordiques proto-germaniques, ou « vieux futhark » à 24 lettres organisées en trois ættir (familles) de 8 runes.

rune \ʁyn\ féminin

1.    Caractère de l’ancienne écriture scandinave, ou même proto-germanique.

N.B. : - L'écriture runique est le plus ancien système connu d'écriture des langues germaniques orientales et septentrionales. Les plus anciennes inscriptions datent du IIe siècle ap. J.-C. (mais certaines pourraient dater de la première moitié du Ier siècle).
- Elle est globalement déchiffrée et lue, mais certaines inscriptions — probablement codées ou lacunaires — posent encore des problèmes de déchiffrement
.
- Cela d'autant plus qu'elle a d'abord servi à retranscrire une langue aujourd'hui disparue (et reconstruite : le proto-germanique), qu'elle a servi ensuite à transcrire plusieurs langues parentes mais différentes.
- De fait il existe plusieurs types et formes de runes, avec des variantes régionales, et qui ont évolué dans l'histoire, même si leur parenté est avérée et évidente : il existe ainsi des « runes proto-germaniques puis germaniques » ou vieux 
fuþark à vingt-quatre signes, des « runes cryptiques » (dont des « runes de substitution », et d'autres « runes à crochets », dites aussi hahalrunar « runes-chaudron »), et des « runes scandinaves » (ou fuþark à 16 signes, dont une « variante de Rök » : kortkvistrunar « runes à branches courtes »), et même une variante « sans brindilles ».
- À chacun des caractères de cet alphabet étaient associées et attribuées certaines vertus 
magiques.

§  Tu n'ignores pas la vertu des runes
Ni le pouvoir des signes tracés sur les lames
 — (Anatole FranceLe Mannequin d'osier, 1897, p. 86)

§  il entend la parole étrange,
le dire, les chants chamarrés,
les runes mieux chantées, parées
dans les prés de Väinölä,
les landes du Kalevala.
 — (Elias LönnrotLe Kalevala, Chant 3 — Traduction de Gabriel Rebourcet)

§  Les runes n'ont point seulement une valeur graphique : comme les surates du Koran ou comme le carmen, elles ont un pouvoir mystérieux. Tout cède à l'influence de leur vertu magique : elles dissipent l'orage, domptent les flammes, guérissent les maladies, raniment les morts..., et miracle plus grand, inspirent une tendresse nouvelle au cœur qui ne voulait plus aimer. — (Louis ÉnaultLa Norvège, 1857)

§  De nombreuses inscriptions, difficiles à déchiffrer, se prêtent d'ailleurs à une interprétation relevant d'un usage magique des runes. Certaines laissent entrevoir une caste de prêtres-magiciens, capables de conférer un pouvoir magique aux objets par le simple fait d'y graver leur nom. Ces maîtres des runes se désignent quelques fois sous le nom d'erilaR, terme dont la signification demeure incertaine, parfois rapproché du nom d'un peuple, les Hérules, parfois apparenté au titre scandinave jarl, mais interprété comme désignant un magicien, un prêtre, ou les deux à la fois. Les runologues contemporains mettent toutefois en garde contre la tentation d'attribuer une signification magique à toute inscription obscure, soulignant que la valeur magique des runes n'est attestée que de façon marginale, même si les runes peuvent, comme tout système d'écriture, être utilisées pour écrire des formules magiques. Les inscriptions indéchiffrables peuvent tout aussi bien être attribuées à des artisans insuffisamment lettrés. — (Frédéric Vincent, « Runes et inscriptions runiques », Fafnir – L'encyclopédie de la Scandinavie médiévale, 2018, § 5).




quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Nietzsche, A Gaia Ciência - "Quem nos limpará das mãos esse sangue?"

O monólogo do louco, excerto de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche:


«Onde está Deus?, gritou ele, já vos digo! Matámo-lo – vós e eu! Somos todos os seus assassinos! Mas como foi que fizemos isso? Como fomos capazes de esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja com que apagámos o horizonte inteiro? Que fizemos ao desamarrarmos esta terra do seu sol? Para onde irá agora a Terra? Para onde nos levará o seu movimento? Para longe de todos os sóis? Não nos teremos precipitado numa queda sem fim? Uma queda para trás, para o lado, para a frente, para toda a parte? Haverá ainda um em cima e um em baixo? Ou não erraremos através de um nada infinito? Não sentimos já o sopro do vazio? Não está mais frio? Não é sempre noite sem descanso e cada vez mais noite? Não teremos que acender as lanternas desde manhãzinha? Não ouviremos nada ainda do ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não nos chega o cheiro da putrefacção divina? – Também os deuses apodrecem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos! Como teremos consolação, nós, os assassinos dos assassinos? O que o mundo até então possuíra de mais sagrado e de mais forte perdeu o seu sangue com as nossas facas – quem nos limpará das mãos esse sangue?»


Retrato de Friedrich Nietzsche por Edvard Munch, 1906




segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Um poema de Juan Vicente Piqueras

            O Quarto Vazio

Para Carlos Edmundo de Ory

Era um dos teus jogos preferidos,
O que é que há num quarto vazio?,
perguntavas. Ficávamos em silêncio.

O que é que há num quarto vazio?

Os que não conheciam o jogo
talvez dissesse: Nada, e tu dizias: Não.
Nada é nada, eu disse o que é que.

Até que alguém dizia, por exemplo: Silêncio.
E tu dizias: Sim.
E outro dizia: Pó.
E o jogo começava a ganhar asas.

Umas pegadas no chão.
Um fantasma. Uma tomada. O buraco
de um prego. A penumbra.
O quadrado que a ausência de um quadro
deixa na parede. Um fio.
Uma carta no chão.
A marca de uma mão na parede.
Um raio de sol que entra pela janela.
Uma teia de aranha. Um pedaço
de papel. Uma unha. Uma formiga perdida.

A música que vem da rua
(haverá música sem alguém que a escute?).
Uma mancha de fumo ou humidade.
Gatafunhos ou pássaros ou nomes
ou um desenho da Laura na parede.

Tu ias dizendo sim ou não.
Tu sabias. Eras o inventor do jogo.
Tu já sabias, Carlos, o que há
no quarto vazio onde acabas de entrar.

Era um dos teus jogos preferidos.
- O que há num quarto vazio?
- Um fantasma.
- Já disseram.
- Sim, mas este de que falo é outro.




terça-feira, 16 de julho de 2024

A paleta de Renoir

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) em casa

«Dizer como era a sua paleta diz mais sobre isso do que todas as minhas explicações. Mas permita-me o leitor que lhe lembre, antes de mais, como costuma ser a paleta de um pintor. As cores amontoam-se nela de qualquer maneira, sobrepõem-se, misturam-se. A camada é tão espessa que deixa de se ver a madeira, Nessa amalgama é impossível isolar uma tonalidade pura, pelo que o pintor está sempre a acrescentar-lhe o conteúdo de mais um tubo que, uma vez dada a primeira pincelada, é absorvido pela massa informe. Erguem-se à sua volta regimentos de pincéis. Ele está sempre a abastecer-se dessa reserva, porque ao cabo de algumas aplicações estão todos empastados daquela amalgama multicolor. Quando o pintor já não consegue ter mão na confusão, raspa a paleta com uma faca e espreme para cima dela os tubos até à dobra. Tem uma gaveta cheia de tubos novos que em breve vão substituir os vazios. Esta descrição não é nenhuma crítica. Há grandes pintores que procedem desta maneira, chegando mesmo a aplicar a tinta directamente do tubo para a tela.

A paleta de Renoir era limpa «como uma moeda nova». Era uma paleta quadrada que se encaixava na tampa do estojo, que tinha a mesma forma. Num dos godés duplos, punha óleo de linhaça puro e no outro uma mistura de óleo de linhaça com essência de terebintina, em partes iguais. Numa mesa baixa, colocada ao lado do cavalete, tinha um copo cheio de essência de terebintina em que enxaguava o pincel, praticamente após cada aplicação de cor. Na caixa, e em cima da mesa, tinha alguns pincéis de reserva. Nunca tinha em uso mais do que dois ou três ao mesmo tempo. Mal começavam a ficar gastos, esborratavam, ou por qualquer outra razão deixavam de lhe proporcionar uma absoluta precisão de pincelada, deitava-os fora.

Exigia que destruíssem os pincéis velhos, não fosse ele pegar em algum deles por engano enquanto trabalhava. Na mesinha havia também panos limpos, com os quais secava de vez em quando o pincel.

 A caixa de pintura de Renoir, Museu d'Orsay

A caixa, tal como a mesa, estava sempre perfeitamente arrumada Os tubos de tintas eram sempre enrolados a partir da dobra, de forma obter, ao espremê-los, a quantidade exacta de tinta pretendida No princípio da sessão de trabalho, a paleta, que tinha sido limpa no fim da sessão interior, estava imaculada. Para a limpar, começava por raspá-la, vertendo os resíduos para um papel, que atirava logo para o lume. Em seguida, esfregava-a com um pano embebido em essência de terebintina até que não houvesse o mínimo resquício de tinta na madeira. O pano ia também para o lume. Os pincéis eram lavados com água fria e sabão. Recomendava que se esfregassem suavemente os pelos na palma da mão. De vez em quando encarregava-me desta operação, o que me enchia de orgulho.

Renoir descreveu pessoalmente a composição da sua paleta numa nota que a seguir transcrevo e que data, evidentemente, do período impressionista:

Branco de prata, amarelo de crómio, amarelo-de-nápoles, ocre amarelo, terra-de-siena natural, vermelhão, laca de garança, verde-veronês, verde-esmeralda, azul-cobalto, azul-ultramarino, espátula,
raspadeira, essência, tudo o que é necessário para pintar O ocre amarelo, o amarelo-nápoles e a terra-de-siena são meros tons intermédios que são dispensáveis, pois podem fazer-se com outras cores.
Pincéis redondos de pêlo de marta, pincéis chatos de seda. 

Registe-se a ausência do preto, «a rainha das cores», como ele próprio iria proclamá-lo no seu regresso de Itália.

O Almoço dos remadores, 1880-1881, The Phillips Collection, Washington D.C.

À medida que se aproxima do fim da vida irá simplificar ainda mais a sua paleta. A ordem de que me lembro na época em que pintava As Grandes Banhistas do Louvre, no ateliê de Les Collettes, era
a seguinte: começando de baixo, junto da abertura para o polegar, o branco de prata, em quantidade generosa, o amarelo-de-nápoles num montículo minúsculo, tal como todas as cores que se seguem - o
ocre amarelo, a terra-de-siena, o ocre vermelho, a laca de garança, a terra verde, o verde-veronès, o azul-cobalto, o negro-marfim. Esta selecção de cores não era inalterável. Eu vi Renoir, embora em raras
ocasiões, aplicar vermelhão chinês que punha na paleta entre a laca de garança e a terra verde. Nos últimos tempos de vida, muitas vezes simplificou ainda mais e para alguns quadres dispensou o ocre vermelho e a terra verde. Nem Gabrielle nem eu o vimos usar o amarelo de crómio. Esta exiguidade de meios era impressionante. Os montículos de tinta pareciam perdidos na superfície de madeira, rodeados de vazio. Renoir encetava-os com parcimónia, com respeito. Era como se achasse que iria ofender Mullard, que lhe tinha preparado meticulosamente aquelas cores, se atafulhasse a paleta com elas e depois não as usasse até à mais pequena parcela.»

Jean Renoir, PIERRE-AUGUSTE RENOIR, MEU PAI pp. 336-338
Ed. Bizâncio