terça-feira, 17 de novembro de 2020

Der Untergang, Joachim Fest

Coloquei o título no original porque o português pareceu-me algo 'sensacionalista' (No bunker de Hitler - Os últimos dias do Terceiro Reich). Abri um pouco ao acaso e logo me deparei com esta passagem tremenda:

«Na capital reinava uma grande confusão. Todas as manhãs punham-se em marcha comandos de emergência, reunidos apressadamente, para reforçar as barreiras das ruas, cavar fossos antitanques, levantar defesas rudimentares com madeira e cimento. Apesar de, à volta da cidade, existirem letreiros que diziam 'Proibido aos refugiados manterem-se na capital do Reich!», nas ruas ainda acessíveis dos subúrbios passavam filas intermináveis de pessoas com cavalos, carroças ou gado, que muitas vezes se metiam nas zonas de combate. As estações estavam a abarrotar com comboios de mercadorias detidos, carregados de alimentos, de tropas de reforço e de feridos. Não havia dúvida de que os bombardeamentos tinham cessado desde que o Exército Vermelho estava perto. Mas a cidade continuava iluminada por novos incêndios e pelo turbilhão de pó incandescente e de partículas de cinza que caía como uma chuva fina e que cobria com uma capa de cal as fachadas, as árvores e as pessoas. Aviões russos sobrevoavam incessantemente a cidade. Os enervantes gritos das sirenes prosseguiam desde há semanas, mas agora tinham um som estridente e constante a assinalar o «alarme de tanques». Por todo o lado viam-se veículos militares queimados ou abandonados por falta de combustível. A artilharia soviética, que se tinha posicionado à volta da cidade, alcançava já todos os bairros incendiando casa antes de avançar com a infantaria. Até algumas ruínas voltaram a ser atacadas pelo fogo, como observam relatos dessas semanas.

Em cada dia que passava, havia uma fábrica, uma oficina ou um serviço de abastecimento que deixava de trabalhar. Muitas vezes faltava a água durante várias horas e, desde o dia 22 de Abril, era condenado quem utilizasse eletricidade para cozinhar. No asfalto amolecido acumulavam-se destroços e lixo, que, juntamente com o cheiro omnipresente da carne queimada, provocam um fedor insuportável. Especialmente nos bairros no interior da cidade, as pessoas não saíam durante dias das caves e das passagens subterrâneas do metro. Aquelas que tentavam sair, cobriam as caras com panos molhados para se protegerem contra os vapores cáustico de fogo e fósforo. A simples sobrevivência era muito difícil. Os últimos jornais, assim como os cartazes afixados nas colunas de anúncios, continham uma mistura de palavreado de vitória e ameaças, em conjunto com bizarros conselhos acerca da maneira de superar os perigos da vida diária. Para melhorar 'a base de proteínas', dizia um desses conselhos, a população devia ir aos inúmeros lagos da cidade e caçar rãs, o que facilmente conseguiam 'ao arrastar trapos de cores na superfície da água perto da margem'.» pp. 85-86


 No Bunker de Hitler. Uma excelente iniciativa da Guerra & Paz







Memórias do Miguel Bombarda (António Lobo Antunes)

Hoje no Facebook deparei-me com este texto muito bonito do António Lobo Antunes. Chama-se 'Ontem voltei a ser feliz' e foi publicado na revista Visão de 22 de novembro de 2018. Gosto especialmente de memórias - de lugares, de acontecimentos, de pessoas, de tempos que já não voltam. E esta é maravilha de simplicidade, estranheza e engenho.

«Ontem jantei com uma mulher muito atraente. E nova. Mais ou menos trinta anos, loira natural, olhos verdes, uma pele e um sorriso lindos, boa figura
(cerca de um metro e setenta)
bem vestida, inteligente, com imensa graça, médica e tudo. E, por cima disto, um pai infinitamente sedutor: eu. A certa altura ela
(Chama-se Isabel, queria chamar-lhe Eva em homenagem à minha avó germânica mas a minha mãe tirou-me logo as peneiras com uma simples pergunta
– E se ela for feia?
porque, de facto, Eva e feia são duas coisas que não se aguentam bem juntas, de modo que mudei logo para Isabel)
a certa altura do jantar a Isabel começou a recordar-se de quando, em pequena, eu a levava ao Hospital Miguel Bombarda tal como o meu pai, éramos nós miúdos, nos levava também, e por ali andávamos com ele numa mistura de espanto e medo. Quer o meu pai quer eu gostámos imenso de trabalhar naquele sítio. As pessoas internadas fascinavam-me, aprendi o mais importante da vida com elas, com a sua criatividade, o seu humor, o seu sofrimento. A Isabel, então com cinco ou seis anos, lembrava-se de uma série de vinhetas extraordinárias. Por exemplo do doente
(classificavam-nos como doentes)
e orelha pegada a uma parede, à escuta, na careta franzida de quem espera ouvir. À nossa frente caminhava um enfermeiro a quem o doente pediu que encostasse também a orelha. O enfermeiro encostou, desencostou, disse ao doente
– Não ouvi nada
foi-se embora e ele para mim, apontando a parede, resignado
– Anda há horas nisto.
E continuou atento, imóvel, aguardando, porque aquilo, pensando bem, não era um hospital mas a Alice no País das Maravilhas a sério. Recordo-me da senhora que em lugar de
– Bom dia
me saudava
– Cri cri cri foguete
que me parece muito mais apropriado, ou do pintor francês que quando o meu pai lhe perguntou se tinha filhos respondeu indignado
– Não senhor doutor eu não fabrico cadáveres
ou da velhota grávida do Menino Jesus, sempre a tricotar casaquinhos de malha para a Divina Criança,
ou do homem (acho que já falei nele)
que me transmitiu, numa simples frase, a técnica da criação artística, que ainda hoje utilizo, ao informar-me
– Sabe, o mundo começou a ser feito por detrás
o que me ajudou a resolver, de golpe, uma série de dificuldades,
ou do Valdemiro, que me ensinou a voar
– Cuidado com os ramos mais altos
ou do sujeito que ligou para a Urgência declarando
– Daqui a meia hora estou aí para matar o chefe de equipa
bem vestido, bem penteado, de gravata e pistola na mão, disse-lhe
– Mate-me mas primeiro sente-se ao meu colo um bocadinho
e sentou-se de pistola na mão, e depois abraçou-me, e depois desatou a chorar porque a vida não é verdade, porque a vida senhor doutor, porque a vida, porque a vida, porque a vida, o enfermeiro pegou na pistola
– Isto tem mesmo balas sabia?
comigo cheínho de vontade de chorar por ele também. Meu Deus o que as pessoas sofrem, somos todos tão frágeis, tão à mercê de tudo, estamos tantas vezes tão infinitamente sós. No Hospital Miguel Bombarda, onde o professor Miguel Bombarda foi assassinado a tiro, ele, agonizante, impediu que matassem o seu assassino ordenando
– Deixem-no, é um pobre
e, de facto, somos todos tão pobres, estamos todos, tantas vezes, tão sós. Felizmente resta a esperança que as paredes, mesmo apesar de andarem há horas nisto, nos coloquem a palma no joelho e garantam, numa ternura que nos anima de novo
– Descanse que daqui a nada elas conversam consigo».

António Lobo Antunes (n. 1942), foto de 2010 tirada da wikipedia




segunda-feira, 11 de maio de 2020

Chalamov, Lao Tsé, Rilke


Hoje abri os Contos de Kolimá, de V. Chalamov, e deparei-me com esta passagem:

«A cadeia não gosta de espertos. Na cela, todos se vêem uns aos outros 24 horas por dia. Ninguém tem forças para esconder o seu verdadeiro carácter, para fingir ser quem não é. Na cela de detenção preventiva, nos minutos, horas, dias, semanas, meses, de tensão, de nervosismo, tudo o que há de supérfluo, de arrogante, cai das pessoas como as pinhas do pinheiro.» (p. 79)

Faz lembrar esta outra máxima do Tao Te Ching:

«Quem se ergue nos bicos dos pés não aguenta muito tempo.»

E há ainda esta outra de Rilke de que gosto muito. Não é a mesma coisa, mas tem alguma relação com isto:

«Pois a pobreza é um grande clarão que vem do interior...» (Livro de Horas)

quarta-feira, 11 de março de 2020

que não te possam ignorar


Ora aí está um bom lema de vida:

«Be so good they can’t ignore you» Steve Martin




quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Hendrick Goltzius (1558-1617)

Grande gravador e pintor maneirista nascido em Mülbracht (Renânia) em 1558 e falecido em 1617 em Haarlem (norte da Holanda). Filho de um vitralista, terá queimado a mão direita num acidente durante a aprendizagem, o que não o afastou das artes. «Um acidente com fogo na infância deformou permanentemente sua mão direita. Segundo o seu biógrafo Karel van Mander, esforçou-se para superar essa deficiência com uma constante disciplina, ganhando por fim uma desenvoltura que impressionou seus contemporâneos, e tornando-se ambidextro», diz a Wikipedia. Goltzius (latinização do apelido Golts ou Goltz) teve uma próspera e bem apetrechada oficina, esteve ao serviço de diferentes cortes (incluindo a de Rodolfo II, o mecenas de Arcimboldo) e em vida foi celebrado sobretudo pelas suas obras de carácter mitológico. Mas o que eu achei delicioso foram estes desenhos de animais. Segundo a Wikipedia: «Diz a tradição que Goltzius e dois amigos abriram uma academia para estudos a partir do natural, um contraponto ao trabalho de "invenção" que era tão prestigiado pelos maneiristas».

Peixe-galo (os britânicos chamam-lhe John Dory e os espanhóis Sanmartiño)


Macaquinho acorrentado

um peixe descrito como cruyck

Vanitas


Vanitas

Tomo banho
e visto-me a preceito.
Escovo dentes e cabelos
(com escovas diferentes).

De manhã,
ao espelho,
disfarço o melhor que posso
cada um dos meus defeitos.

22.IX.2015


Retrato de Caravaggio, gravura de Henri Simon Thomassin (c. 1710-1741)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A Maldição do Marquês, romance histórico de Tiago Rebelo

«O Paço Real da Ribeira desapareceu debaixo de água e a onda gigante, carregando consigo veleiros, barcaças e faluas, embateu com um troar de canhões na primeira linha de edifícios em chamas, infiltrou-se com maior pressão ainda nas ruas estreitas da Baixa e só parou muito depois da praça do Rossio. A esta onda seguiram-se duas outras igualmente destruidores, que tudo e todos arrastaram numa fúria bíblica».

«Depois, o homem tirou-lhe o lenço que trazia ao pescoço e ela protestou.
– Não me descomponhas – disse, num tom gelado. E essas foram as últimas palavras que proferiu.
O algoz vendou-lhe os olhos com o lenço.
Caiu um silêncio de horror quando o algoz ergueu o cutelo, suspenso um momento no ar, e, num só golpe de grande destreza, decepou-lhe a cabeça sem lhe dar um segundo de sofrimento. A lâmina afiada atravessou-lhe o pescoço como uma corrente de ar. Foi tal a perfeição do golpe, que passou a ilusão de ter falhado, pois a cabeça manteve-se no seu lugar e só rolou para o chão do patíbulo quando o corpo sem vida de D. Leonor se inclinou para a frente, e do pescoço cortado ao meio espirrou uma fonte de sangue muito vermelho».

D. Leonor foi a primeira supliciada no processo dos Távoras, tema de A Maldição do Marquês. A esta carnificina escapou apenas um criado do duque de Aveiro, José Policarpo de Azevedo. É ele o protagonista deste excelente romance histórico bem escrito e bem documentado.


Tiago Rebelo
A Maldição do Marquês
Ed. Asa
574 págs., €19,90

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Livros e abelhas - James Russell Lowell

Há uma bonita passagem de Embalando a minha Biblioteca em que Alberto Manguel fala sobre o zumbido das abelhas que lhe faz companhia enquanto lê sentado num murete da sua propriedade em França.
Essa passagem liga bem com esta citação de James Russell Lowell (1819-1891), poeta romântico, diplomata, jornalista, primeiro editor da The Atlantic Monthly:


“Books are the bees which carry the quickening pollen from one to another mind.”

traduzindo: "Os livros são as abelhas que transportam o pólen fecundador de uma mente para a outra"

As abelhas dos Barberini

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O homem com o bafo de ouro. Bill Bryson - O Corpo, Um Guia para Ocupantes


Bill Bryson, o homem que sabe quase tudo


Sensacional e fascinante, o mais recente livro de Bill Bryson publicado em Portugal (ed. Bertrand).

Trata de assuntos aos mais diversos níveis, do metafísico ao repugnante.

Fiz uma extensa seleção de excertos, destacando, para começar em beleza, uma história sobre o grande engenheiro oitocentista inglês Isambard Brunel. Embora a história seja contada por Bryson, decidi dar-lhe um título:


O homem com o bafo de ouro
«Na primavera de 1843, o grande engenheiro Isambard Kingdom Brunel fez uma rara pausa no seu trabalho – estava a construir o SS Great Britain, o maior e mais complexo navio a sair de um estirador de desenho à época – para entreter as crianças com um truque de magia. No entanto, as coisas não correram bem como planeado. A meio da atuação, Brunel engoliu acidentalmente uma moeda de ouro de meio soberano que tinha escondido debaixo da língua. Podemos facilmente imaginar a expressão de surpresa de Brunel, seguida por consternação e talvez pânico ao sentir a moeda deslizar-lhe pela garganta e alojar-se abaixo da traqueia. Não lhe causava muita dor, mas era desconfortável e enervante já que sabia que, se se movesse apenas um pouco, a moeda podia sufocá-lo.
Isambard Kingdom Brunel (1806-1859)
Ao longo dos dias seguintes, Brunel, os seus amigos, colegas, familiares e médicos tentaram todos os remédios óbvios, desde fortes palmadas nas costas até segurá-lo de pernas para o ar pelos tornozelos (era um homem de baixa estatura e fácil de levantar) e sacudi-lo vigorosamente, mas nada resultou. Brunel decidiu procurar uma solução à engenheiro e inventou uma estrutura na qual podia pendurar de cabeça para baixo e ser balouçado em círculos largos, na esperança de que o movimento e a gravidade fizessem cair a moeda. Também não funcionou.

O problema de Brunel tornou-se motivo de conversa pela nação. Chegaram-lhe sugestões vindas de todos os cantos do país e do estrangeiro, mas todas as tentativas falharam. Por fim, o conceituado médico Sor Benjamin Brodie decidiu tentar uma traqueotomia, um procedimento arriscado e desagradável. Sem o benefício de uma anestesia – a primeira utilização de anestesia na Grã-Bretanha terá lugar apenas três anos mais tarde – Brodie fez uma incisão na garganta de Brunel e tentou extrair a moeda com uma espécie de pinça comprida introduzida nas vias aéreas, mas Brunel não conseguia respirar e tossiu tão violentamente que tiveram de abandonar a tentativa.

Finalmente, no dia 16 de maio, mais de seis semanas depois do início da sua provação, Brunel fez-se prender novamente à sua engenhoca e colocaram-no em movimento. Quase imediatamente, a moeda caiu e rebolou pelo chão». p. 122 

E agora vamos ao resto.

«Desmontados, nós somos de facto enormes. Os nossos pulmões, alisados, cobririam um campo de ténis, e as vias aéreas dentro deles iriam de Londres a Moscovo. O comprimento de todos os nossos vasos sanguíneos daria duas voltas à Terra. Mas o mais espantoso de tudo é o ADN. Há um metro dele comprimido dentro de cada célula, e as células são tantas que, se uníssemos todo o ADN do nosso corpo num único fio, ele teria 16 mil milhões de quilómetros, uma distância maior do que da Terra a Plutão» p. 16

Quantos átomos são necessários para fazer uma pessoa?
«No total, são precisos sete mil milhões de mil milhões de mil milhões (ou seja, 7 000 000 000 000 000 000 000 000 000, ou oito octiliões) de átomos para formar uma pessoa»

«Todos sabemos que não se pode viver sem cabeça, mas quanto tempo ela sobrevive depois de cortada, exatamente, é uma questão que recebeu muita atenção em finais do século XVIII. Era uma boa altura para tal, porque a Revolução Francesa fornecia a estas mentes inquisitivas um abastecimento constante de cabeças decepadas para examinarem.
Uma cabeça decapitada ainda contém algum sangue oxigenado, pelo que a perda de consciência pode não ser instantânea. As estimativas de quanto tempo o cérebro pode continuar a funcionar vão dos dois ao sete segundos – isto partindo do princípio de que a separação do corpo é perfeita, o que não acontece sempre, de modo algum. [...] Tal como Frances Larson diz na sua fascinante história da decapitação, Severed, Mary, a rainha da Escócia, precisou de três valentes golpes antes de a sua cabeça cair no cesto, e ela tinha um pescoço relativamente delicado».

Gaguez – p. 141

«As sangrias eram consideradas benéficas, não só para doenças, mas para acalmar a pessoa. Frederico, o Grande, da Prússia era sangrado antes da batalha só para lhe acalmar os nervos. AS taças de sangria eram bens preciosos da família, passados de geração em geração. A importância da sangria é ainda hoje bem evidente no facto de o venerável jornal médico da Grã-Bretanha The Lancet, fundado em 1823, ter o nome do instrumento utilizado para abrir as veias»165

A glândula pituitária [...] – que está enterrada nas profundezas do cérebro, diretamente atrás dos olhos -, é mais ou menos do tamanho de um feijão, mas os seus efeitos podem ser, literalmente, enormes. Robert Wadlow, de Alton, Illinois, o humano mais alto que alguma vez viveu, tinha um problema na glândula pituitária que o impediu de parar de crescer devido a um excesso de produção contínuo da hormona de crescimento. Wadlow, um homem tímido e bem disposto, aos oito anos era mais alto do que o pai (de estatura normal), media 2,10 metros aos 12 anos e mais de 2,40 metros quando acabou o ensino secundário em 1936 – tudo por causa de um pequeno excesso de trabalho químico deste feijão no meio do seu crânio. Nunca parou de crescer e, no auge da sua fama, media mais de 2,70 metros. Embora não fosse gordo, pesava cerca de 225 quilos e calçava o tamanho 100. Aos vinte e poucos anos já caminhava com grande dificuldade. Para se apoiar, usava um aparelho nas pernas, que lhe roçava a pele e acabou por causar uma ferida, o que levou a uma infeção grave que se tornou sética e o matou durante o sono no dia 15 de julho de 1940. Tinha apenas 22 anos de idade. A sua altura, no momento da morte, era 2,70 metros». 181

«A carne de um braço humano, depois de removida a pele, é surpreendentemente parecida com carne de fgrango ou peru. Só quando vemos que termina numa mão com dedos e unhas é que nos apercebemos de que é carne humana. É nessa altura que achamos que se calhar vamos vomitar»

]Os órgãos] não são fixos e duros como nos modelos de plástico, estes movem-se facilmente. Fazem-me lembrar vagamente balões de água. Há dentro do corpo muitas outras coisas – vasos sanguíneos, nervos e tendões, muitos, muitos intestinos, tudo como se tivesse sido atirado lá para dentro ao acaso» 200

Sobre a cartilagem
«É muito mais lisa do que o vidro; tem um coeficiente de fricção cinco vezes inferior ao gelo. Imagina jogar hóquei numa superfície tão lisa que os patinadores se deslocariam dezasseis vezes mais depressa? A cartilagem é assim. Porém, ao contrário do gelo, não é quebradiça. Não estala sob pressão, como o gelo. E somos nós que a produzimos. É uma coisa viva. Não há nada igual na engenharia ou na ciência. A maior parte da melhor tecnologia à face da Terra está aqui mesmo, dentro de nós» 201

«Tranquila e ritmicamente, acordado ou a dormir, geralmente sem pensar nisso, todos os dias você inspira e expira cerca de 20 000 vezes, processando com constância cerca de 12 500 litros de ar, conforme o seu tamanho e nível de atividade São 7,3 milhões de inspirações entre aniversários, 550 milhões, aproximadamente, ao longo de uma vida» 263

«Na verdade, somos tão cabeludos como os nossos primos macacos, simplesmente os nossos pelos são maios finos e claros. No total estima-se que tenhamos cerca de cinco milhões de pelos mas o número varia de acordo com a idade e as circunstâncias e, de qualquer forma, é apenas um palpite»p.  32

Comichões - 41

«Para um objeto tão puramente assombroso, o cérebro humano é bastante básico, à primeira vista. Para começar, é 75%-80% água, com o restante dividido essencialmente entre gordura e proteína. É verdadeiramente espantoso que três substâncias tão mundanas possam unir-se de uma forma que nos permite pensamento e memória, visão e apreciação estética, e tudo o resto. Se retirasse o cérebro do crânio, ficaria certamente surpreendido ao perceber como ele é macio. A consistência do cérebro já foi comparada a tofu, manteiga ou um pudim ligeiramente cozido demais».

Memória – 80-83

Cabeças cortadas – 97

«Se tivesse um globo ocular humano na mão, talvez ficasse surpreendido com o seu tamanho, já que vemos apenas cerca de um sexto dele quando está encaixado na órbita. O olho parece um saco cheio de gel, o que não admira, pois está mesmo cheio de um material semelhante a um gel, o [...] humor vítreo (‘humor’, no sentido anatómico, significa qualquer fluido ou semifluido do corpo e não, obviamente, a sua capacidade de fazer rir)» 107

«As lágrimas não só mantêm as pálpebras a deslizar bem, como uniformizam imperfeições minúsculas na superfície do globo ocular, possibilitando uma visão focada. Contêm também químicos antimicrobianos, que conseguem manter à distância a maior parte dos agentes patogénicos. Há três variedades de lágrimas: basais, reflexas e emocionais. As lágrimas basais são as funcionais, que fornecem lubrificação. As lágrimas reflexas são aquelas que surgem quando o olho é irritado por fumo, cebolas cortadas ou coisas do género. E as emocionais são, obviamente, o que o nome indica, mas são também únicas. Somos as únicas criaturas que choram por sentimento, tanto quanto sabemos. Porque o fazemos é mais um mistério da vida» 108 «No total, uma pessoa produz entre 150 e 300 mililitros de lágrimas por dia»

Todos os dias, só para sobreviver, o rato tem de ingerir cerca de 50% do seu próprio peso em comida. Os humanos, em contraste, precisam de consumir apenas cerca de 2% do seu peso para satisfazer as necessidades energéticas. [...]
Podíamos reduzir consideravelmente as nossas necessidades energéticas se tivéssemos sangue frio. Um mamífero típico consome cerca de trinta vezes mais energia por dia do que um réptil; o que significa que temos de comer num dia o que um crocodilo precisa de ingerir num mês. O que ganhamos com isto é a capacidade de saltar da cama de manhã, em vez de termos de ficar espojados numa rocha a aquecer ao sol, de conseguirmos mover-nos à noite ou com tempo frio, e de sermos de um modo geral mais enérgicos e reativos do que os nossos amigos répteis 232

Uma área em que todos os animais são uniformes – curiosamente, de forma quase arrepiante – é em relação ao número de batimentos cardíacos de que dispõem ao longo de uma vida. Apesar das grandes diferenças na velocidade dos batimentos, quase todos os mamíferos têm cerca de 800 milhões de batimentos cardíacos dentro deles, se viverem uma vida de duração média. A exceção são os humanos. Nós passamos os 800 milhões de batimentos depois dos 25 anos e continuamos a viver mais 50 anos, o que equivale a uns 1,6 mil milhões de batimentos cardíacos. É tentador atribuir esse vigor excecional a alguma superioridade inata da nossa parte, mas na verdade foi apenas das últimas dez ou doze gerações que nos desviámos do padrão médio dos mamíferos, graças ao aumento da nossa esperança de vida. Durante a maior parte da nossa história, 800 milhões de batimentos cardíacos por vida foi também a média dos humanos. 232

Eletricidade no corpo, p. 237

Pessoas que sobrevivem a quedas enormes – 240-1 Nicholas Alkemade

244-245 – experiências dos nazis (e dos japoneses) testando os limites do ser humano -  Por mais horripilantes que tenham sido as experiências alemãs, elas foram superadas, pelo menos em escala se não em crueldade, pelos japoneses. Sob a orientação de um médico chamado Shiro Ishii, os japoneses construíram um enorme complexo com mais de 150 edifícios espalhados por seis quilómetros quadrados em Harbin, na Manchúria, com o objetivo declarado de determinar as limitações fisiológicas humanas por quaisquer meios considerados necessários. Este complexo era conhecido como Unidade 731. 245

Respiração - 263

«Ao longo da vida consumimos cerca de 60 toneladas de comida, o equivalente, como diz Carl Zimmer em Microcosm, a ingerir sessenta carros pequenos» 294

«Quase um quarto do ketchup Heinz é açúcar. Tem mais açúcar por unidade de volume do que a Coca-Cola» [comentário meu: mas a pessoa bebe dois ou três copos de coca-cola e apenas coloca um pouco de ketchup nas batatas]

«Tal como observou Daniel Lieberman, os frutos modernos foram seletivamente criados para serem muito mais doces do que no passado. As frutas que Shakespeare comia no seu tempo, em geral, não seriam mais doces do que uma cenoura» 299

«O tempo de trânsito gastrointestinal [...] é algo muito pessoal e tem grandes variações de indivíduo para indivíduo [...]. Para um homem, o tempo de viagem médio da boca ao ânus é 55 horas. Numa mulher, normalmente, aproxima-se mais das 72. [...]
Em termos gerais, cada refeição que comemos passa quatro a seis horas no estômago, mais seis a oito horas no intestino delgado – onde tudo o que é nutritivo (e tudo o que engorda) é retirado e despachado para o resto do corpo para ser utilizado ou, infelizmente, armazenado – e até três dias no cólon, onde biliões de bactérias recolhem o que o resto dos intestinos não conseguiu aproveitar – fibra, maioritariamente» 307-8

«A maior fonte de doenças causadas por alimentos não são a carne, os ovos ou a maionese, como se costuma pensar, mas vegetais de folha verde . Estes são responsáveis por cada uma em cinco doenças de origem alimentar»

Objetos estranhos engolidos ou inalados – 127

«Os adultos no Ocidente produzem cerca de 200 gramas de fezes por dia – 73 quilos por ano, 6500 quilos ao longo da vida, aproximadamente. Os excrementos são compostos em grande parte de bactérias mortas, fibras não digeridas, células intestinais descartadas e resíduos de glóbulos vermelhos mortos. Cada grama de fezes que produzimos contém 40 mil milhões de baterias e 100 milhões de archaea.» 317

Pessoas mais velhas – 460-1

Bill Bryson
O Corpo - Um Guia para Ocupantes
Ed. Bertrand
536 páginas
€22,20

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Kurt Cobain por Charles R. Cross

Excelente biografia do malogrado vocalista e mentor dos Nirvana, publicada em Portugal pela PIM! edições para assinalar a tripla efeméride que se celebrou em 2019: 30 anos do primeiro álbum da banda (Bleach), 25 anos da morte (por duplo suicídio, com dose fatal de heroína e tiro de caçadeira) de Kurt Cobain e 25 anos do lançamento póstumo do MTV Unplugged in New York.

Deixo-vos com quatro/ cinco excertos:

«Um exemplo típico desse humor [retorcido e sarcástico] foi Kurt gritar, diante de uma fogueira: 'Como é possível estragar uma coisa tão bem feita como o fogo pondo-o a deitar fumo?'». pp. 62-3

«Todos os esforços do casal para envolvê-lo nas rotinas domésticas fracassavam. Começara a boicotar as noites de família e, tendo interiorizado um sentimento de abandono, optava por assumir uma postura de desvinculação. "Atribuíamos-lhe tarefas domésticas, coisas banais, mas ele não as fazia", recorda Don. "Começámos a tentar suborná-lo com uma mesada, e íamos descontando se não cumprisse determinadas tarefas. Mas ele recusava-se a fazer tudo. Acabava por nos ficar a dever dinheiro. Tornava-se violento, batia com as portas e saía disparado para a cave". Também aparentava ter menos amigos. "Reparei que alguns dos amigos dele começaram a desaparecer", recorda Jenny. "[...]  Parecia mais introvertido. Andava mais calado e taciturno". Rod Marsh lembra-se de que, naquele ano, Kurt matou o gato de um vizinho. Com um sadismo adolescente e em tudo contrário à sua postura na vida adulta, fechou o animal ainda vivo na lareira da casa dos pais e riu-se quando ele morreu e o cheiro a queimado infestou a casa». p. 70

«Durante o dia, Kurt foi explorar a cidade [de Roma] com Pat Smear e visitou atrações turísticas, mas, acima de tudo, reuniu acessórios para aquilo que imaginou que ia ser um encontro romântico - ele e Courtney não se viam há 26 dias, ou seja, o maior período de afastamento na história da relação. "Foi ao Vaticano e gamou uns castiçais grandalhões", recorda Courtney. "Também arrancou um bocado de pedra do Coliseu, para me oferecer".» p. 429

«Enquanto os Nirvana ensaiavam, Courtney, Carrie e Wendy foram comprar roupa. Mais tarde, Kurt saiu para comprar droga, que em Nova Iorque era tão abundante como os vestidos em saldo. Em Alphabet City, Kurt ficou impressionado ao ver filas de clientes à espera do traficante, como na canção dos Velvet Underground. Por essa altura estava fascinado pelo ritual de consumo e pelo submundo sórdido para onde esse ritual o levava. A heróina branca chinesa de Nova Iorque (a da Costa Oeste era sempre preta como alcatrão) fazia-o sentir-se sofisticado, além de ser mais barata e eficaz. Kurt tomou-lhe o gosto.

Naquela sexta-feira, quando Wendy bateu à porta do quarto do filho, .ao meio-dia, ele foi abrir em cuecas, com um mau aspeto impressionante. Courtney ainda estava debaixo dos lençóis. Havia bandejas de restos de comida por toda a parte e, ao cabo de apenas dois dias na suíte, o chão estava pejado de lixo. "Kurt, porque não chamas uma empregada?", perguntou Wendy. "Não pode", respondeu Courtney. "Elas roubam-lhe as cuecas."» p 306




segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Brevíssima história da Guerra da Coreia

Capa da Time dedicada ao general Curtis LeMay


"Apenas cinco anos após a abissal destruição de Hiroxima e Nagasáqui, MacArthur sugeriu seriamente a ideia de largar uma bomba nuclear na Coreia do Norte.
A opção nuclear foi rapidamente posta de parte. Mas os Estados Unidos adotaram uma abordagem literal de terra queimada com bombas convencionais, largando 635 mil toneladas na metade norte da península, mais do que as 504 mil toneladas utilizadas em todo o teatro de operações do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. Estas incluíram 200 mil bombas largadas em Pyongyang, uma por cada cidadão da capital.
Curtis LeMay, chefe do comando aéreo estratégico dos Estados Unidos [em quem se inspirou o Dr. Strangelove de Kubrick], afirmou que «arrasaram todas as cidades da Coreia do Norte». Quando já restavam poucos alvos urbanos, os bombardeiros norte-americanos destruíram barragens hidroelétricas e de irrigação, inundando terras de lavoura e destruindo colheitas. A força aérea queixou-se de que já não tinha alvos para bombardear. Depois da guerra, os soviéticos concluíram que 85% de todas as estruturas do Norte haviam sido destruídas
No fim da guerra [da Coreia], de acordo com os historiadores, quae três milhões de coreanos (10% da população da península) estavam mortos, feridos ou desaparecidos. LeMay calculou que cerca de dois milhões de fatalidades haviam ocorrido no Norte. Trinta e sete mil americanos, aproximadamente, morreram em combate.
Após toda esta devastação, e muito depois de se tornar qevidente que nem o Norte apoiado pelos chineses e pelos soviéticos, nem o Sul apoiado pelos americanos podia vencer em definitivo, os dois lados concordaram com um armistício. Em 27 de julho de 1953, o conflito chegou ao fim."

Anna Fifield, O Grande Sucessor (ed. Casa das Letras)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Ainda Veneza

«O bem-estar veneziano, comparado com a aspereza da vida nos outros sítios, preocupava o Papa Silvestre II. Que escreveu ao doge e ao patriarca de Grado exprimindo a sua apreensão acerca dos modos corrompidos de um clero local demasiado envolvido nos negócios humanos. Não era apenas uma questão de simonia [transação de bens espirituais] e nicolaismo [conúbio com mulheres]: sacerdotes e bispos, mergulhados no lucro profano "como banqueiros ou corretores da bolsa", estavam enredados nas maldades espalhadas por todo o lado das mulheres e no tráfico de bens espirituais que a Igreja combatia no seu trabalho de reforma»

Gherardo Ortalli e Giovanni Scarabello, A Short History of Venice, pp. 31-32