quarta-feira, 5 de novembro de 2025

George Orwell, a permanência e a aniquilação

«O sol deslocara-se no céu e as imensas janelas do Ministério da Verdade, agora que a luz já não incidia sobre elas, pareciam lúgubres seteiras de uma fortaleza. O coração de Winston estremeceu ante a enorme forma piramidal. Era demasiado sólida, era impossível ser abalada. Nem mil mísseis poderiam derrubá-la. Interrogou-se de novo sobre para quem estaria a escrever o diário. E diante de si não havia morte, mas sim aniquilação. O diário ficaria reduzido cinzas e ele próprio a vapor. Só a Polícia do Pensamento leria o que ele escrevera antes de o varrer da existência e da memória. Como se poderia apelar ao futuro quando era impossível que qualquer vestígio nosso, mesmo uma palavra anónima escrevinhada num bocado de papel, pudesse sobreviver fisicamente?
[...]
Era um fantasma solitário que murmurava uma verdade que ninguém ouviria. Mas, enquanto ele a murmurasse, de algum modo obscuro a continuidade não seria quebrada. Não era por se fazer ouvir, mas sim por se manter mentalmente sã que uma pessoa prolongava a herança humana.»


George Orwell, 1984

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A música da tundra - a digressão de Richter pela Sibéria


 «A única música que se ouve na tundra é a chaleira a assobiar ao lume»

Anna Nerkagi, escritora nenetse e defensora dos direitos dos nativos, in Sophy Roberts, Os pianos perdidos da Sibéria, p. 213


Agora um interessante excerto sobre a digressão do grande Sviatoslav Richter pela Sibéria em 1986:

«Em 1986, o lendário pianista soviético Sviatoslav Richter pegou num pedaço de cartão com o mapa da URSS e, com um marcador azul escuro, desenheu uma estrada através da Sibéria, preenchendo os nomes de todos os locais que queria visitar. Enfiou o mapa na sua mala e partiu para atingir o seu objetivo - uma viagem de Moscovo ao Pacífico, e volta, deslocandose em parte por estrada e em parte de comboio, parando amiúde para realizar recitais de piano. Nesta digressão épica, foi acompanhado pela sua amiga filóloga e escritora Valentina Chemberdzhi que, subsquentemente, publicou as suas recordações da viagem.

Richter tinha conhecimento das intensas digressões pelos estrangeiro feitas por Franz Liszt - e a comparação é esclarecedora. Os dois homens suportaram estradas infernais cheias de buracos para chegarem os locais onde queriam tocar. Também tiveram ambos de se remediar que os instrumentos que lhes punham à frente, Liszt a tocar no chocalhante Tompkinson vertical na sala de um hotel irlandês e Richter em todo o tipo de equivalentes soviéticos nas pequenas cidades espalhadas pela Sibéria. Ao contrário do que afirma um mito popular, Richter não levou consigo o seu Yamaha preferido («é difícil imaginar um piano de cauda num yurt ou na taiga!», comentou Valentina Chemberdzhi). «Na Rússia profunda, nem sempre tive esses instrumentos excelentes - nada disso, mas não atenção», disse Richter. «De qualquer modo houve alturas em que toquei em pianos horríveis, e toquei extremamente bem.» 

Richter, que odiava voar, visitou Khabarovsk, Chita (onde procurou os pianos dos Dezembristas e não conseguiu encontrá-los), Ulan-Ude, Irkutsk, Krasnoiarsk e Burnaul, bem como inúmeras povoações pelo meio. E Abakan, nas margens do rio Ienissei, um artigo local descreveu o frenesi suscitado por Richter: pela primeira vez, os siberianos podiam ouvi-lo a tocar ao vivo. Entre os palcos, contaram-se escolas de música e salas de concerto locais. Os programas de Richter - mesmo os garatujados em folhas de papel e afixados pouco antes do espetáculo - esgotavam sempre rapidamente a lotação das salas, por vezes em menos de 30 minutos. «A sala ficava cheia só por as pessoas passarem informação de boca em boca. Isto não acontece não ocidente», comentou uma vez. Com Richter, a simplicidade era o que estava em causa. Gostava de tocar às escuras para o público se concentrar na música e não no intérprete. «A única coisa que importa é que as pessoas não venham por snobismo, mas sim para ouvirem a música», afirmou. Lendo o relato de Valentina Chemberdzhi, parece que o público siberiano de Richter compreendeu: as suas descrições animadas revelam o gosto genuíno das pessoas por uma arte musical ao vivo, que fora precisamente como Denis Matsuev me descrevera a Sibéria no início da minha investigação.»


Sophy Roberts, Os pianos perdidos da Sibéria, pp. 281-282

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A percepção silenciosa - Boulevard du Temple, de Daguerre

 «A perceção absolutamente silenciosa assemelha-se a uma imagem fotográfica com um tempo de exposição muito grande. A fotografia do Boulevard du Temple de Daguerre apresenta na realidade uma rua parisiense muito movimentada. Contudo, devido ao tempo de exposição extremamente longo, típico do daguerreótipo, tudo o que se move desaparece. Só é visível o que permanece parado. O Boulevard du Temple irradia uma calma quase aldeã», em que todo o ruído está proscrito. «Além dos edifícios e das árvores, apenas se vê uma figura humana, um homem a quem limpam os sapatos, e por isso está parado.» Apenas o longo e o lento se tornam realidade. «Tudo o que se apressa», tudo o que tem pressa – e todos nós temos pressa –, «está condenado a desaparecer. O Boulevard du Temple pode ser interpretado como um mundo visto através de um olho divino. Ao seu olhar redentor apenas aparecem os que permanecem em silêncio contemplativo [ou a engraxar os sapatos, acrescento eu]. É o silêncio o que redime.»

[VARIAÇÕES GOLDBERG, BWV 988, VAR. 25 E 21] Byung-Chul Han, A tonalidade do pensamento, p. 49 (ed. Crítica)


Boulevard du Temple, Louis Daguerre, 1838

O homem a engraxar os sapatos




René Char sobre Rimbaud e os vulcões

«Se os vulcões pouco mudam de lugar, a sua lava percorre o grande vazio do mundo trazendo-lhes virtudes que cantam nas suas feridas».



quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Ah, ah, ah...

Era uma pessoa tão cautelosa, tão cautelosa, mas tão cautelosa, que nunca saía do quarto sem antes bater à porta... 'Toc, toc, toc'



Aias do apocalipse

Por que são os submarinos nucleares tão temidos? Afinal, uma bomba não pode ser lançada a partir de um avião (como Hiroxima e Nagasáqui) ou de terra? Qual a diferença? Aqui fica a explicação, retirada de Guerra Nuclear - Um cenário, de Annie Jacobsen, provavelmente um dos livros mais perturbadores publicados nos últimos anos.




«Um submarino nuclear armado com bombas nucleares é um pesadelo. Um objeto tão perigoso para a existência do homem como um asteroide em rota de colisão com a Terra. Estes submarinos recebem muitos nomes: boomers, navios da morte, máquinas opressivas, aias do apocalipse. São impossíveis de localizar e estão armados até aos dentes. Cada um dos submarinos da classe Ohio do arsenal dos Estados Unidos pode lançar até 80 bombas nucleares em minuto e meio e desaparecer.
A Rússia mantém uma frota de capacidade aproximadamente equivalente.
Temíveis e venerados, são obras-primas de engenharia. Ecossistemas autossuficientes que geram a sua própria energia, fabricam o seu próprio oxigénio e a sua água potável e podem permanecer debaixo
de água quase indefinidamente ou até a tripulação ficar sem comida. Invisíveis para os satélites de reconhecimento, os submarinos circulam no oceano com impunidade. Porque a possibilidade de os detetar é zero, são imunes a um primeiro ataque, ou quase a qualquer ataque, até serem obrigados a subir à superfície no seu regresso ao porto.
Com um comprimento de dois campos de futebol, cada submarino da classe Ohio é capaz de lançar 20 mísseis balísticos submarinos - os terríveis SLBM. Com mais de 13 metros de comprimento, 2 metros
de diâmetro e um peso de quase 60 toneladas no momento do lançamento, cada SLBM está armado com múltiplas ogivas nucleares.
O poder de fogo de um destes submarinos pode destruir um país inteiro.
As capacidades de tiro do submarino nuclear diferem de maneiras significativas dos ICBM de base terrestre. Por serem indetetávels debaixo de água, podem aproximar-se bastante da costa de um país
e lançar um primeiro ataque, baixando o tempo entre lançamento e impacto de 26 a 33 minutos para uma fração disso. Os mísseis nucleares são lançados de submarinos de maneiras únicas. De longo
alcance (intercontinentais) e alcance mais curto, usando uma trajetória deprimida (mais baixa). A modo de exemplo, um submarino russo a rondar ao largo da costa oeste dos Estados Unidos pode lançar os
seus mísseis quase simultaneamente para alvos em todos os cinquenta estados, tudo de uma só vez. Isto é assim porque as múltiplas armas nucleares na ogiva de cada míssil podem ser dirigidas a alvos distintos que estão a centenas de quilómetros de distância. Esta é uma razão primária da política de Lançamento ao Alerta e porque a tríade nuclear - como a tríade nuclear da Rússia - permanece em
Alerta de Gatilho Fácil.
E é o motivo pelo qual o presidente tem uma janela de seis minutos para deliberar e decidir sobre um contra-ataque nuclear.
«Se Washington fosse atacada por um submarino russo a 1.000 quilómetros da nossa costa, o tempo de voo seria menos de sete minutos entre o lançamento e o impacto», previne Ted Postol. «O presidente não teria tempo de escapar e um "sucessor designado" teria então de assumir o comando nuclear.»»


quarta-feira, 30 de julho de 2025

Manuel Vilas, Em tudo havia beleza [Ordesa]

Depois de ler comentários entusiásticos, tive curiosidade de espreitar Em tudo havia beleza, de Manuel Vilas, autor que até aqui eu desconhecia.

Da leitura de algumas páginas 'salpicadas' aqui e ali, retive este trecho:

«Em finais dos anos sessenta, o meu pai levava-nos de férias para uma pensão numa povoação de montanha. A povoação era Jaca. Ele conhecia aquela pensão do seu trabalho como caixeiro-viajante. Dizia que se comia muito bem. Estava entusiasmado de nos levar lá. Estar lá com a família, estar com os seus no sitio em que habitualmente estava sozinho. Presentear-nos a sua descoberta.

Era isso que estava a fazer a oferecer-nos uma descoberta, uma vitória.

Era verdade que se comia bem, faziam uma tortilha à francesa deliciosa e misteriosa, com um sabor que nunca mais voltes a provar em nenhuma tortilha. Eu tinha sete anos na altura, pelo que estávamos em 1970, mais ou menos. A imagem que guardo desses anos implica uma dimenção incorpórea vejo coisas que brilham. vejo pó amarelo, móveis grandes e antigos em estado líquido, corpos irreais, cheiros sadios, mas cheiros falecidos. Antigamente, os cheiros eram melhores, acho eu; melhores não, talvez
mais naturais. A sala de refeições da pensão tinha um toque oitocentista, ou é assim que me lembro dela. As toalhas das mesas eram de bom tecido, muito brancas. As escadas que iam dar aos quartos eram de madeira. As portas dos quartos eram altas. As camas metiam-me medo. Ao jantar, ofereciam como sobremesa um pudim flã caseiro que era uma delícia. Deixavam-me entrar na cozinha. Nunca estivera
nama cozinha de restaurante e deslumbrou-me que fosse tão grande e que tivesse tantas frigideiras e tantas panelas e tanta gente a trabalhar Passeávamos por Jaca, que me parecia uma cidade muito bonita, embora não tivesse praia. Não conseguia entender porque é que não havia praia, se estávamos de férias. A minha mãe levava-me à piscina municipal. Foi aí que me ensinaram a nadar, e foi lá que engoli muita água. Nesses anos, deu-se o boom das piscinas municipais. Todas as terras com mais de dez mil habitantes se emanciparam dos rios.

Espanha transformou-se em câmaras que construíam piscinas municipais. E esquecemo-nos dos rios, que acabaram os seus dias a servir de lixeiras.



Há muitos anos que essa pensão fechou. Não sei que será feito daquelas toalhas tão brancas, nem das frigideiras, nem das camas, nem dos móveis, nem dos faqueiros, nem dos lençóis.

As coisas também morrem.

A morte dos objectos é importante. Porque é o desaparecimento da matéria, a humilde matéria que nos acompanhou e esteve ao nosso lado enquanto a vida se ia cumprindo.»


Pelo que percebi, Ordesa, a palavra que surge em parêntesis retos depois do título, deve referir-se ao Parque Natural de Ordesa e Monte Perdido, em Aragão. Fica no Norte de Espanha, próximo de Jaca, a localidade referida no trecho escolhido.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A história do boi e do asno

Excerto de O homem mais rico da Babilónia, de George S. Clason (pp. 72-73)


«Nunca ouviu falar do agricultor de Nínive que conseguia entender a linguagem dos animais? Suponho que não, pois não é propriamente o tipo de história que se conta a alguém que se dedica à fundição do bronze. Mas vou contar-lhe para que saiba que pedir emprestado e emprestar vai muito para além do simples facto de o ouro passar das mãos de uma pessoa para as mãos de outra. 

«Esse agricultor, que conseguia entender o que os animais diziam uns aos outros, detinha-se todas as noites no quintal da sua propriedade para os ouvir a conversar. Uma noite ouviu o boi queixar-se dos rigores da sua sorte:

- Trabalho que nem um mouro, puxando o arado de manhã à noite. Por mais quente que esteja o dia, por mais cansadas que estejam as minhas pernas, por mais que o jugo esfole o meu pescoço, tenho que continuar. Tu, no entanto, és uma criatura que tem as suas horas descanso. Cobrem-te com um manto colorido e nada mais fazes do que transportar o nosso amo aos lugares aonde ele deseja ir. Quando ele não sai, ficas o dia todo a comer relva. 

«O asno, apesar dos teus famosos coices, era bom companheiro e simpatizava com o boi. 

- Meu bom amigo - replicou -, o teu trabalho é de facto muito pesado e gostaria de te ajudar. Por isso, dir-te-ei como podes fazer para ter um guia de descanso. De manhã, quando o escravo vier amarrar-te ao arado, deita-te no chão e geme o mais que puderes, para que ele diga que estás doente e não estás em condições de trabalhar.

«O boi assim fez e no outro dia o escravo foi ter com o agricultor para comunicar que o boi estava doente e que não podia puxar o arado.

- Nesse caso - disse o agricultor - use o asno, pois o serviço não pode ficar por fazer.

«Durante o dia todo, o asno, que só quisera ajudar o amigo, viu-se obrigado a dar conta do recado do outro. À noite, depois de o desamarrarem do arado, tinha o coração amargurado, as pernas bambas e o pescoço todo esfolado. 

«O agricultor deixou-se ficar no pátio da quinta a ouvir a conversa entre ambos. 

«O boi foi o primeiro a falar:

- És um bom amigo. Devido ao teu sábio conselho, tive um dia de descanso.

- E eu - retorqui o asno - sou como essas pessoas de bom coração que começam por ajudar o amigo e acabam por ser obrigadas a fazer as tarefas dele. A partir de agora, puxa o teu próprio arado, pois ouvi o amo ordenar aos escravo que tem envie para abate se ficares novamente doente. Oxalá que faça mesmo isso, pois és um preguiçoso.

«A partir de então não se falaram mais, tendo o episódio posto um ponto final a amizade entre os dois. Sabe qual é a moral desta história, Rodan? [...] Apenas isto: se deseja ajudar um amigo, faça-o mas de modo que os fardos dele não sejam colocados sobre os seus ombros.»

A magia dos cabelos e das unhas

Excerto de Histoire des Magies, por Kurt Seligmann, L'Encyclopédie Planète, pp. 48-49 (traduzido pelo Google tradutor com supervisão humana)

«Nem todos os livros de Zoroastro foram preservados, e apenas uma pequena parte do que resta pode ser atribuída ao próprio mago: são os dezassete salmos ou Gatahs. As regras de adoração e sacrifício são quase igualmente antigas. Os outros livros da religião dos magos contêm hinos, orações diárias e ritos litúrgicos. O conjunto de livros denominado Vendidad, uma compilação de ciência antidemoníaca, foi escrito na segunda metade do século V a.C. Contém rituais de um tipo mais puramente mágico do que os outros e que, por isso, requerem toda a nossa atenção: pois a teologia dogmática do Zoroastrismo é essencialmente religiosa, mas o ritual de lidar com os demónios é mágico. Dois exemplos ilustrarão o aspecto mágico dos ritos de purificação: o ritual do cabelo e das unhas, que descreveremos neste capítulo, e o aplicado ao Demónio Mosca, que veremos mais adiante.


Kurt Seligmann (1900-1962). Artista suíço, estudou Belas-Artes em Genebra e Florença. Juntou-se aos surrealistas em Paris, mas acabou por zangar-se com Breton, o mentor do movimento, depois de uma discussão em que Seligmann o acusou de saber pouco sobre o tarot. Quando a Segunda Guerra Mundial deflagrou na Europa, mudou-se com a mulher para os Estados Unidos, onde o casal acabou por comprar uma quinta. Seligmann montou o seu ateliê no antigo celeiro e constituiu uma coleção de livros raros de mgia e ocultismo. Foi nessa mesma quinta que morreu, num acidente surreal: estava a disparar contra os ratos quando escorregou na neve e disparou contra a sua própria cabeça...   



No décimo sétimo capítulo da Vendidad, lemos uma prescrição que diz respeito ao corte de unhas e cabelos, que, assim que são separados do corpo, pertencem ao Maligno como moradas de impureza.

O interesse que Zoroastro manifestou por cabelos e unhas não deixou de provocar comentários irónicos: quantas superstições havia neste sábio! É certo que ritos semelhantes existem entre tribos primitivas cujo nível de civilização é muito inferior ao dos iranianos da Antiguidade. Algumas tribos escondem os seus cabelos e unhas, ou queimam-nos em segredo com receio de que caiam nas mãos de feiticeiros que os utilizem para lançar feitiços maléficos sobre os seus antigos donos.

O nosso sentimento de condescendência em relação às superstições zoroastrianas diminuirá quando soubermos quantas crenças semelhantes ainda existem na Europa e na América. Os gaúchos do Chile enfiam os cabelos em fendas nas paredes, como os turcos. Os arménios escondem-nos em igrejas, ocos de árvores e colunas. Os camponeses franceses dos Vosges enterram-nos em segredo, juntamente com os seus dentes extraídos, e deixam uma marca no local do seu esconderijo, para que possam ser encontrados no dia da ressurreição. Em Drumconrath, na Irlanda, as palavras das Escrituras de que todos os fios de cabelo de cada pessoa são contados pelo Todo-Poderoso são levadas à letra, e os fios cortados são separados para serem recuperados no Juízo Final. O bom povo de Liège, na Bélgica, retira cuidadosamente os cabelos dos pentes por temer que caiam nas mãos das bruxas.

A ideia de Zoroastro de que o cabelo e as unhas geram insetos e outros animais não era sua. Esta crença era mais antiga que a Pérsia e perdurou até ao século XVI d.C. Acreditava-se que os cabelos das mulheres cobertos de estrume se transformavam em cobras. No seu livro sobre bruxaria, publicado em 1603, o famoso juiz Henri Boguet recorda a opinião de São Tomás, que acreditava que os ramos de madeira podre poderiam sofrer a mesma transformação mágica. Embora Paracelso tenha afirmado: nihil est sine spermate — nada existe sem semente —, a antiga superstição sobreviveu até à época de Leibniz e Newton. Ainda hoje, na Bretanha, se acredita na geração espontânea de insetos: os pelos levados pelo vento transformam-se em moscas.

Cobras, insetos, sapos, piolhos, moscas etc. eram considerados animais nascidos da corrupção e não da germinação, daí as suas ligações com poderes infernais. Segundo Zoroastro, foram criados por Arimã, uma vez que nada de imperfeito poderia vir de Ormuzd. No Cristianismo, a imperfeição era atribuída ao Diabo, que a tradição popular nunca retrata numa forma humana perfeita: coxeia ou tem cascos fendidos que revelam a sua verdadeira natureza. Satanás, tal como Arimã, era o mestre dos animais impuros. Não deu aos seus seguidores um piolho de prata como símbolo da sua amizade?

Esta crença na particular corruptibilidade dos cabelos e das unhas é muito misteriosa, porque a realidade prova o contrário: na sepultura, continuam a crescer durante algum tempo, apesar da decomposição do cadáver.

O cristianismo, tal como o zoroastrismo, estabeleceu uma ligação entre o cabelo e o inferno. Os judeus piedosos não têm melhor opinião sobre as unhas, e é por isso que as cortam o mais curtas possível: para eles, as unhas, habitadas pelo mal, são a única parte do corpo incapaz de servir a Deus. Em Madagáscar, os nativos acreditam que o diabo reside debaixo de unhas mal aparadas. 

«As bruxas», diz Paracelso, «dão a Satanás os seus cabelos como garantia do contrato que fazem com ele. Mas o Maligno não desperdiça esses cabelos; corta-os muito finamente e mistura-os com o hálito do qual formará granizo; e é assim que normalmente descobrimos pequenos fios de cabelo no coração das pedras de granizo.» Esta ideia de que o cabelo é o refúgio por excelência dos encantos demoníacos seria adotada pelos caçadores de bruxas. Antes de as levarem à tortura, cortavam-lhes o cabelo, o que, ao que parece, era o suficiente para fazer muitas confessarem. O jurisconsulto Jean Bodin (1530-1596), por exemplo, relata na sua obra De la demonomanie des sorciers (1580) que, em 1485, quarenta bruxas confessaram os seus crimes em simultâneo depois de lhes terem rapado a cabeça. Para defender estas práticas, Bodin recorda que Apolónio de Tiana sofreu o mesmo destino quando o Imperador Domiciano o prendeu por bruxaria. Recorde-se que, após a libertação da França, em 1944, as mulheres que tinham tido relações com os alemães viram os seus caracóis caírem sob as tesouras dos patriotas: era inegavelmente um vestígio longínquo de magia primitiva, um rito purificador realizado numa pessoa tabu. Os cabelos destas mulheres estavam contaminados pelo vírus do tabu que os franceses tinham lançado - para usar o vocabulário de Freud - sobre os ocupantes.»


As moradas da imundície. 

1. Zaratustra (Zoroastro) perguntou a Ahura-Mazda (Ormuzd): «Ó Abura-Mazda! espírito benfazejo, criador do mundo material, tu, santo, qual é o ato mais horrível pelo qual um homem aumenta a força mais malévola dos Devas, como faria ao oferecer-lhes um sacrifício?» 

2. Ahura-Mazda respondeu: «É quando um homem cá em baixo, penteando o cabelo, rapando-o ou cortando as unhas, os atira para um buraco ou fenda. 

3. «Depois, por necessidade de observar os ritos legais, os Devas a que chamamos piolhos multiplicar-se-ão na terra e devorarão o trigo no trigal e as roupas no guarda-roupa.

4. «É por isso, Zaratustra!, que sempre que penteares o cabelo, rapares ou cortares as unhas aqui na terra, os levarás a dez passos do crente, a vinte passos do fogo, a trinta passos da água e a cinquenta passos dos feixes consagrados de Baresma (ramos sagrados).

5. De seguida, cavará um buraco, com dez dedos de profundidade se a terra for dura, e doze se for macia; colocarás o teu cabelo nele e dirás em voz alta estas palavras para atingir o demónio: «Na sua misericórdia, Mazda fez crescer as plantas». 

6. «Aí, traçarás três sulcos com uma lâmina de metal à volta do buraco, ou seis, ou nove, e cantarás o Ahura Vairya três vezes, ou seis, ou nove vezes.

7. «Para as unhas, cavarás um buraco fora da casa, tão fundo como a última falange do dedo mindinho; nele colocarás as unhas e dirás em voz alta estas palavras para atingir o demónio: «As palavras são ouvidas pelo homem piedoso na santidade, com bons pensamentos».

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

As duas Romas

Dei-me conta recentemente, ao ler em dias próximos uns epigramas de Marcial (38-104 d.C.) e umas máximas de Marco Aurélio (121-180), de que existem duas Romas. A Roma austera, viril, devotada ao dever - em suma, estóica - e a Roma brincalhona, maledicente, sensual, às vezes obscena, devotada ao prazer.

Podemos dizer com alguma propriedade que serão as duas faces da mesma moeda.

Essa dicotomia aparece bem representada numa máxima do imperador-filósofo: «A arte da vida assemelha-se mais à do lutador do que à do dançarino, pois o lutador deve estar sempre pronto e em guarda, mantendo-se firme contra os esforços súbitos e imprevisíveis do seu adversário». (recorro não à fonte original, mas ao livro de Ryan Holiday e Stephen Hanselman Estoico todos os dias, que está cheio de sabedoria antiga).

Mas este é talvez o melhor exemplo da Roma estoica, uma daquelas máximas gravadas na pedra:

«Lembra-te de que quando a mente se recolhe em si e encontra lá a tranquilidade, torna-se invulnerável. Não age contra a sua vontade, ainda que tal resistência seja irracional ou uma decisão deliberada e baseada na lógica... A mente sem paixões é uma fortaleza. Não existe nenhum lugar mais seguro. Assim que encontramos lá refúgio, estamos em segurança para sempre. Não perceber isto é ignorância; mas sabê-lo e não procurar este refúgio é uma infelicidade.» 

Marco Aurélio, Meditações, 8. 48 (Holiday e Hanselman, p- 328)

E agora a Roma libidinosa, debochada, libertina...

«Gozemos a vida, Lésbia, fazendo amor,
desprezando o falatório dos velhos puritanos.»

(Catulo, Carmina, V)

E finalmente Marcial:

«QUE SEJAM MEUS VERSOS POUCO SÉRIOS

Que sejam os meus versos pouco sérios,
tais que o mestre os não pode ler na Escola,
tu lamentas, Cornélio. Porém, os meus livrinhos,
tal como às tuas consortes os maridos,
não podem sem caralho dar prazer.
Como escrever lascivo canto nupcial
sem usar lascivos termos nupciais?
Quem com traje de jogos florais, às meretrizes
permite que tenham seriedade de matronas?
Estes ligeiros poemas a uma lei obedecem:
apenas dão prazer se forem excitantes.
Por isso dá ao demo a seriedade,
não condenes, te peço, as minhas brincadeiras,
e tira da ideia castrar os meus livrinhos.
Nada há mais torpe que um Príapo capado!»

Epigramas, I, 36

(Estes dois excertos são retirados de Poemas Eróticos da Antiguidade Clássica, org. Victor Correia)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Padrões desencontrados

Tenho padrões desencontrados:
estou a usar cuecas às riscas
com um pijama aos quadrados.

(depois de ler haikus e Adília Lopes)