Depois de ler comentários entusiásticos, tive curiosidade de espreitar Em tudo havia beleza, de Manuel Vilas, autor que até aqui eu desconhecia.
Da leitura de algumas páginas 'salpicadas' aqui e ali, retive este trecho:
«Em finais dos anos sessenta, o meu pai levava-nos de férias para uma pensão numa povoação de montanha. A povoação era Jaca. Ele conhecia aquela pensão do seu trabalho como caixeiro-viajante. Dizia que se comia muito bem. Estava entusiasmado de nos levar lá. Estar lá com a família, estar com os seus no sitio em que habitualmente estava sozinho. Presentear-nos a sua descoberta.
Era isso que estava a fazer a oferecer-nos uma descoberta, uma vitória.
Era verdade que se comia bem, faziam uma tortilha à francesa deliciosa e misteriosa, com um sabor que nunca mais voltes a provar em nenhuma tortilha. Eu tinha sete anos na altura, pelo que estávamos em 1970, mais ou menos. A imagem que guardo desses anos implica uma dimenção incorpórea vejo coisas que brilham. vejo pó amarelo, móveis grandes e antigos em estado líquido, corpos irreais, cheiros sadios, mas cheiros falecidos. Antigamente, os cheiros eram melhores, acho eu; melhores não, talvez
mais naturais. A sala de refeições da pensão tinha um toque oitocentista, ou é assim que me lembro dela. As toalhas das mesas eram de bom tecido, muito brancas. As escadas que iam dar aos quartos eram de madeira. As portas dos quartos eram altas. As camas metiam-me medo. Ao jantar, ofereciam como sobremesa um pudim flã caseiro que era uma delícia. Deixavam-me entrar na cozinha. Nunca estivera
nama cozinha de restaurante e deslumbrou-me que fosse tão grande e que tivesse tantas frigideiras e tantas panelas e tanta gente a trabalhar Passeávamos por Jaca, que me parecia uma cidade muito bonita, embora não tivesse praia. Não conseguia entender porque é que não havia praia, se estávamos de férias. A minha mãe levava-me à piscina municipal. Foi aí que me ensinaram a nadar, e foi lá que engoli muita água. Nesses anos, deu-se o boom das piscinas municipais. Todas as terras com mais de dez mil habitantes se emanciparam dos rios.
Espanha transformou-se em câmaras que construíam piscinas municipais. E esquecemo-nos dos rios, que acabaram os seus dias a servir de lixeiras.
Há muitos anos que essa pensão fechou. Não sei que será feito daquelas toalhas tão brancas, nem das frigideiras, nem das camas, nem dos móveis, nem dos faqueiros, nem dos lençóis.
As coisas também morrem.
A morte dos objectos é importante. Porque é o desaparecimento da matéria, a humilde matéria que nos acompanhou e esteve ao nosso lado enquanto a vida se ia cumprindo.»
Pelo que percebi, Ordesa, a palavra que surge em parêntesis retos depois do título, deve referir-se ao Parque Natural de Ordesa e Monte Perdido, em Aragão. Fica no Norte de Espanha, próximo de Jaca, a localidade referida no trecho escolhido.

Sem comentários:
Enviar um comentário