Prefere caçar à noite. Ao entardecer, eleva-se a partir do fundo sedimentoso e começa a procurar comida e come tudo o que conseguir encontrar. Minhocas, larvas, rãs, caracóis, insectos, lagostins, peixes; se a oportunidade se apresentar, até pequenos ratos e crias de aves. São até necrófagas.
Assim vive a enguia a maior parte da sua vida na sua forma castanho-amarelada, alternando entre actividade e passividade. [...]
E é uma longa vida. Uma enguia que consegue evitar doenças e acidentes pode viver até cinquenta anos num só lugar. Há enguias suecas que, em cativeiro, comprovadamente ultrapassaram os oitenta anos de idade. Há mitos e dizeres sobre enguias que viveram bem mais de cem. Quando a enguia vê negado o objectivo principal da sua existência, isto é, a reprodução, parece conseguir envelhecer sem limites. Como se pudesse esperar para sempre.
Porém, em algum momento da sua vida, geralmente depois dos quinze a trinta anos, a enguia em estado selvagem decide reproduzir-se. [...]
Quando chega o Outono, com a sua escuridão protectora, a enguia prateada [quarto estádio de desenvolvimento] vagueia novamente para o Atlântico, em direcção ao Mar dos Sargaços. [...] É só agora que os órgãos reprodutivos da enguia se desenvolvem, as barbatanas tornam-se mais compridas e fortes para poder nada mais depressa, os olhos ficam maiores e de cor azul para poder ver melhor nas profundezas escuras do oceano, o sistema digestivo deixa completamente de funcionar, o estômago dissolve-se e toda a energia de que precisa é retirada das reservas de gordura, o corpo enche-se de ovas ou sémen. [...]
Percorre distâncias de até quinhentos quilómetros por dia, por vezes a uma profundidade de mil metros da superfície do mar [...]. Talvez leve meio ano, talvez pare pelo caminho à espera de deixar passar o inverno. Verificou-se que uma enguia prateada em cativeiro pode viver até quatro anos sem ingerir qualquer alimento. pp. 14-15
Sigmund Freud chega a Trieste «na primavera de 1876, com a ambição de resolver o enigma da [reprodução da] enguia e deixar a sua marca na história da ciência» (p.49)
«Durante os primeiros dias em Triste, as mulheres pareciam fasciná-lo mais do que qualquer outra coisa». Mas depois diz que são «brutta, brutta», extremamente feias. (p. 50)
«Todas as manhãs, Freud encontra-se com os pescadores que chegam ao porto com a captura do dia, cestos cheios de enguias adriáticas gordas, e dirige-se para o laboratório para começar a trabalhar. Explica o objectivo da sua missão a Silberstein e anexa desenhos simples às cartas: "tu conheces a enguia. Durante muito tempo, apenas as fêmeas destas criaturas eram conhecidas; nem sequer Aristóteles sabia de onde vinham os machos e, portanto, afirmava que a enguia se gerava a partir do lodo. Ao longo da Idade Moderna e até nos tempos modernos, tem havido uma verdadeira caça às enguias do sexo masculino» pp 51-52
«Dia após dia, Sigmund Freud senta-se à sua mesa do laboratório, corta e abre enguias, à procura, observa-as ao microscópio e tira notas, em busca de resposta para o enigma. [...]
"As minhas mãos estão manchadas pelo sangue branco e vermelho daquelas criaturas do oceano, tudo o que vejo quando fecho os olhos é um tecido morto e brilhante, que me assombra constantemente em sonhos, e tudo em que consigo pensar é nas grandes questões, aquelas relacionadas com testículos e ovários – as questões universais e fundamentais".
Durante quase um mês, Freud encontra-se no laboratório simples, absorto no trabalho monótono e infrutífero e, por fim, é forçado a admitir que fracassou. [...] "Tenho-me atormentado, a mim e às enguias, numa tentativa vã de descobrir essa enguia masculina, mas todas as enguias que abri mostraram-se ser do sexo fraco".
Foi a primeira verdadeira missão científica do jovem Sigmund Freud [19 anos] [...]. Durante várias semanas, ficou à sua mesa, a abrir enguias premeditadamente e a vasculhar os seus corpos frios e sem vida, em busca de órgãos reprodutivos. Dias longos, a tresandar a peixe morto, besuntado com o muco pegajoso da enguia. E nem um testiculozinho conseguiu encontrar. Freud examinou mais de quatrocentas enguias e nem uma podia ser comprovada como sendo do sexo masculino» pp. 52-53
«A enguia-de-vidro é considerada uma iguaria local no País Basco e, hoje em dia, quase apenas ali. Não obstante, a tradição de comer a enguia logo neste estado frágil e transparente foi, sem dúvida, bastante generalizada ao longo da história. Na Grã-Bretanha, costumava capturar-se muita enguia-de-vidro no rio Severn. Eram fritas inteiras e ainda vivas, com um pouco de bacon e com ovos batidos numa espécie de omelete, o chamado 'Elver cake'. Em Itália, apanhava-se muita enguia-de-vidro no rio Arno, no ocidente, e em Comacchio, no leste. Aqui, a maneira preferida de servi-las era cozidas em molho de tomate com um pouco de parmesão por cima. Em França, também se pescou muita enguia de vidro em certas regiões. Nos dias de hoje, no entanto, é uma tradição em extinção». p. 92
Foi Tisquantum, membro da tribo Patuxet, que salvou os Pilgrim Fathers de morrer à fome em 1621, oferecendo-lhes um manjar de enguias. «à noite, para alegria do nosso povo, ele voltou com quantas enguias conseguia levantar com uma mão. Eram gordas e doces; ele bateu com os pés no chão e apanhou-as com as próprias mãos, sem ferramentas». pp. 104-5
«É certo que os colonizadores continuaram a pescar e comer enguia e, no final do século XIX, ela continuava a ser um peixe importante na cozinha norte-americana. Contudo, acabou por desaparecer gradualmente das mesas de jantar. Depois da II Guerra Mundial, a reputação da enguia foi piorando e, no final da década de 1990, a pesca da enguia tinha praticamente cessado ao longo de toda a costa leste norte-americana. Muitos norte-americanos são hoje da opinião de que a enguia é um peixe difícil e bastante desagradável, com quem se quer ter o mínimo possível que ver». p 106
«No Antigo Egipto, a enguia era vista como um poderoso demónio, em +pé de igualdade com os deuses e um alimento proibido. [...] Em escavações, arqueólogos encontraram enguias mumificadas em pequenos sarcófagos, sepultadas lado a lado com estatuetas de bronze dos deuses para o eterno descanso».
«No império Romano, também havia opiniões parcialmente divididas em rrelação à enguia. Alguns recusavam-se a comer enguias, tal como os egípcios, não porque as considerassem de alguma forma sagradas, mas antes porque as viam como impuras e abomináveis. Talvez porque a enguia era muitas vezes apanhada precisamente junto a saídas de esgotos. Talvez porque as peles secas das enguias eram utilizadas para fabricar um tipo de cintos, com os quais era costume castigar crianças desobedientes.
Muitos romanos pareciam preferir o safio, Conger conger, ou a moreia, que também é parente da enguia mas [...] a enguia também era frequentemente associada a algo obscuro ou macabro. Tanto Plínio, o Velho, como Séneca, o Jovem, escreveram sobre como o comandante militar romano Védio Polião, amigo do imperador Augusto, costumava punir os seus escravos, atirando-os para uma piscina cheia de enguias. Os peixes sedentos de sangue comiam os corpos dos escravos e eram depois servidos aos convidados de Védio Polião, como uma iguaria particularmente gordurosa e luxuosa». pp 107-8
Patrick Svensson, O Evangelho das Enguias (ed. Objectiva)
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