sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O Chalet da Memória

O Comilão recebeu no seu aniversário O Chalet da Memória e encontra-se neste momento a lê-lo. O livro extraordinário de Tony Judt (sobre quem já coloquei um post) está a superar todas as expectativas (que eram altas). Concilia duas qualidades que, isoladamente, já não são comuns, a subtileza e a profundidade, e juntas são ainda mais raras.

A propósito das manifestações em Portugal de 15 de Novembro (greve geral e protesto violento contra as autoridades), aqui fica um excerto do ensaio 'Revolucionários':

«De um ponto de vista, tudo era como devia ser: pedras do pavimento verdadeiras, problemas verdadeiros (ou suficientemente verdadeiros para os participantes), violência verdadeira e, por vezes, vítimas verdadeiras. Mas a um outro nível, tudo parecia não ser muito sério: já na altura me era difícil acreditar […] que uma comunidade de estudantes impudentemente obcecados com os planos para as férias de Verão – no meio de manifestações e debates intensos, lembro-me de muitas conversas sobre férias em Cuba – queria realmente derrubar o Presidente Charles de Gaulle e a sua V República.»
(sobre o Maio de 68 em Paris)


«O que nos diz do mundo da Guerra Fria, na Europa Ocidental, o facto de eu – um jovem estudante de história, bem informado, de ascendência judaica da Europa de Leste, fluente em várias línguas e muito viajado pela minha metade do continente – desconhecer por completo os acontecimentos cataclísmicos que na altura se desenrolavam na Polónia e na Checoslováquia? Atraído pela revolução? Então, por que não ir para Praga, sem dúvida a cidade europeia mais empolgante naquela altura? Ou Varsóvia, onde os jovens meus contemporâneos arriscavam a expulsão, o exílio e a prisão pelos seus ideais e ideias?»

«Mesmo os poucos audazes que eu conheci que tiveram a infelicidade de passar a noite na prisão, geralmente já estavam em casa à hora de almoço. Que sabíamos nós da coragem necessária para suportar duas semanas de interrogatório nas prisões de Varsóvia, a que se seguiam penas de prisão de um, dois e três anos para estudantes que tinham ousado exigir coisas que nós tínhamos como garantidas?

Apesar das nossas grandiosas teorias de História, não percebemos um dos seus pontos de viragem mais influentes. Foi em Praga e em Varsóvia, naqueles meses de Verão de 1968, que o marxismo se estatelou. Foram os estudantes rebeldes da Europa central que começaram a minar, a desacreditar e a derrubar, não só uns quantos regimes comunistas delapidados, mas o próprio ideal comunista. Se nos tivéssemos importado um pouco mais com o destino das ideias que invocávamos tão superficialmente, podíamos ter prestado mais atenção às acções e opiniões dos que haviam sido criados à sombra delas.

Ninguém se deve sentir culpado por nascer no local certo na hora certa. Nós, no Ocidente, fomos uma geração com sorte. Não mudámos o mundo; em vez disso, o mundo, obsequioso, mudou para nós».

Viver num país comunista

Danuta Walesa, mulher de Lech Walesa, fundador do Sindicato Solidariedade, líder anti-comunista, prémio Nobel da Paz e antigo Presidente da Polónia, disse em entrevista à Tabu:


«A geração que nasceu depois do comunismo já não consegue sequer imaginar os sacrifícios que os seus pais e avós tiveram de fazer para comer um pouco de carne, para ter senhas de racionamento, para saber se havia leite em pó ou fraldas para os bebés… Isso é óptimo. Mas, ao mesmo tempo, é pena que esta geração mais nova não tenha consciência do que custou alcançarmos o que hoje temos.»

«Não compreendo sequer como se pode apoiar um partido comunista perante a experiência daquilo que aconteceu noutros países, perante o fracasso económico, o facto de não haver nada nas lojas e de haver todo o tipo de constrangimentos, as perseguições, as humilhações, a proibição de livre expressão e pensamento…»

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Honra ao Honorato

No passado sábado o Comilão e a sua família foram almoçar ao Honorato, perto do Príncipe Real. Bem cedo, para evitar as extensas filas.
Convém fazer as apresentações: quem já lá foi diz que o Honorato é o melhor hambúrguer de Lisboa. E além disso pratica preços acessíveis, o que não é secundário. A entrada é discreta (ao que parece, tanto o dono como os clientes querem guardar segredo para afastar as multidões, o que não é fácil) e a decoração moderna (os tijolos prateados não são o meu ideal de beleza, mas tudo bem).
O Comilão pediu o hambúrguer honorato (com cebola em vez de milho). E o que dizer dele? Uma maravilha: a carne (com o tempero do sal e pimenta a sobressair de vez em quando), o pão (cortado em três, em vez de ao meio), o tempero, o queijo, as batatas fritas na hora. Até a maionese é deliciosa, com um travo suave a alho. Ainda para mais tem serviço à mesa, profissional e atencioso, o que não seria de esperar numa casa com estas características.
Em suma, talvez não seja apenas o melhor hambúrguer de Lisboa e arredores, mas quem sabe também é o melhor do mundo àquele preço (8 euros). Di-lo quem já provou o do Shake Shack, em Madison Square Garden (NY), do célebre guru Danny Meyer).
No Honorato cada hambúrguer também existe em versão mini, o que mostra uma preocupação simpática com as crianças. O Comilão dá nota máxima.


o hambúrguer Honorato, com belas e abundantes batatas fritas

P.S. - em visitas posteriores o Comilão ficou menos convencido da excelência da carne. Bons hambúrgueres, não há dúvida, mas...

Hambúrgueres artesanais Honorato
Rua da Palmeira, 33-A
Lisboa
preço: 28 euros (para três)
Veredicto: melhor é impossível
5 estrelas *****

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Por que evito usar o guarda-chuva


Numa bela pintura de Gustave Caillebotte de 1877, um casal elegante passeia de braço dado por uma praça de Paris. Ambos vestem impecavelmente (sobretudo ele: cartola, casaca, laçarote, colete, camisa branca). O chão está brilhante da chuva, mas o casal mantém-se impassível. Não é minimamente perturbado pelos pingos que caem do céu, porque o protege um amplo guarda-chuva que o homem segura na mão esquerda. Ao longe vê-se um transeunte a atravessar a rua encurvado para não se molhar: não tem a mesma sorte.

Um guarda-chuva permite andarmos à chuva sem nos molharmos, o que é uma sensação magnífica.

Nos meus tempos de estudante não percebia isso. Nos dias chuvosos, a minha mãe obrigava-me a levar um guarda-chuva para a escola, só que às vezes era um modelo de mulher (a minha mãe negava-o, contra todas as evidências). Eu levava o guarda-chuva contrariado e acabava por perdê-lo ao fim de dois dias.

Até que, já na universidade, ela me arranjou um de que eu gostava; azul-escuro, debruado com um tecido que fazia lembrar as meias de losangos escocesas, e um bonito cabo de madeira envernizada. Andava sempre na bagageira do meu carro.



Só comecei a valorizar o guarda-chuva em Londres, numa casa perto do Fortnum&Mason (a mercearia de luxo) que só vendia artigos para a chuva. Na montra havia uns manequins com gabardinas e dezenas de umbrellas pretas perfeitamente alinhadas. Depois, em Nova Iorque, entrei um dia numa perfumaria para comprar um perfume para a minha sogra e vi lá uns magníficos guarda-chuvas, com cabos irregulares de madeira natural. Espreitei discretamente para as etiquetas: custavam entre 400 e 700 dólares.

Hoje já não sei o que é feito desse meu guarda-chuva favorito. É possível que tenha ficado esquecido na bagageira quando vendi o carro. De qualquer maneira estava muito velhinho. Por isso, quando chove, ando com um daqueles que se encolhem para caber numa mala de senhora. Comprámo-lo em Delfos, na Grécia. Nessa viagem esperávamos apanhar um tempo primaveril, com o céu azul e o sol a brilhar. Não íamos preparados para o mau tempo, pelo que tivemos de comprar um guarda-chuva que estava pendurado à porta de uma loja. A loja era estranhíssima: uma espécie de túnel mal iluminado, onde se vendia de tudo um pouco, de detergentes a bibelôs e brinquedos, tudo aparentemente de má qualidade (ao contrário do guarda-chuva, diga-se). Para pagar, dirigi-me a uma pequena cabina de alumínio ao fundo da loja, uma espécie de guichê das finanças. Uma velhinha surgiu da sombra. Não se percebia por que não havia de estar simplesmente atrás de um balcão e tinha de passar o dia enjaulada naquela marquise.

Numa loja bem diferente, em Bruges, vi um guarda-chuva magnífico, inventado no Japão (marca Senzº). Resiste a ventos de 80 km/h e tem um formato assimétrico. É mais extenso para um dos lados do cabo do que para o outro, para resistir melhor ao vento e de forma a cobrir a pessoa sem invadir demasiado o espaço alheio. Essa assimetria faz com que se parece ainda mais com o símbolo do Batman do que um chapéu de chuva vulgar.



Por que razão não o comprei, se era tão bem concebido e acessível? Porque, para dizer a verdade, sempre que posso evito usar o guarda-chuva - o que faz com que o de Delfos, embora não seja o mais bonito do mundo, chegue perfeitamente para as encomendas. Quando vou para o trabalho não me dá jeito nenhum andar com a pasta do trabalho numa mão e o cabo do guarda-chuva na outra. Com as duas mãos ocupadas, puxar da carteira, abrir uma porta, acenar a um conhecido, atender uma chamada ou tirar o cabelo da testa tornam-se exercícios de malabarismo só ao alcance de um virtuoso, que eu não sou. Já para não falar das passagens estreitas, em que o guarda-chuva fica preso, ou da preocupação para não vazar o olho de um transeunte incauto, até porque o guarda-chuva limita - e muito - o campo de visão (essa é sem dúvida uma das suas maiores desvantagens).

Isso faz-me lembrar uma cena a que assisti há tempos no Chiado: uma senhora dos seus 60 anos desce a Rua Garrett com o seu guarda-chuva aberto, embora estejam a cair apenas uns pinguinhos. Sem reparar, espeta com ele com toda a força na cabeça de um rapaz, que ainda tenta desviar-se, mas a mulher é impiedosa na sua perseguição/ distracção. «Cuidado! Não vês por onde andas?!», resmunga a senhora, enquanto o rapaz, incrédulo, leva a mão à cabeça para ver se está a sangrar. A senhora continua incomodada. Noutros tempos, não teria seguido caminho sem pregar uma valente bengalada ao rapaz pelo seu atrevimento. Com o cabo do chapéu de chuva, naturalmente.