quarta-feira, 30 de julho de 2025

Manuel Vilas, Em tudo havia beleza [Ordesa]

Depois de ler comentários entusiásticos, tive curiosidade de espreitar Em tudo havia beleza, de Manuel Vilas, autor que até aqui eu desconhecia.

Da leitura de algumas páginas 'salpicadas' aqui e ali, retive este trecho:

«Em finais dos anos sessenta, o meu pai levava-nos de férias para uma pensão numa povoação de montanha. A povoação era Jaca. Ele conhecia aquela pensão do seu trabalho como caixeiro-viajante. Dizia que se comia muito bem. Estava entusiasmado de nos levar lá. Estar lá com a família, estar com os seus no sitio em que habitualmente estava sozinho. Presentear-nos a sua descoberta.

Era isso que estava a fazer a oferecer-nos uma descoberta, uma vitória.

Era verdade que se comia bem, faziam uma tortilha à francesa deliciosa e misteriosa, com um sabor que nunca mais voltes a provar em nenhuma tortilha. Eu tinha sete anos na altura, pelo que estávamos em 1970, mais ou menos. A imagem que guardo desses anos implica uma dimenção incorpórea vejo coisas que brilham. vejo pó amarelo, móveis grandes e antigos em estado líquido, corpos irreais, cheiros sadios, mas cheiros falecidos. Antigamente, os cheiros eram melhores, acho eu; melhores não, talvez
mais naturais. A sala de refeições da pensão tinha um toque oitocentista, ou é assim que me lembro dela. As toalhas das mesas eram de bom tecido, muito brancas. As escadas que iam dar aos quartos eram de madeira. As portas dos quartos eram altas. As camas metiam-me medo. Ao jantar, ofereciam como sobremesa um pudim flã caseiro que era uma delícia. Deixavam-me entrar na cozinha. Nunca estivera
nama cozinha de restaurante e deslumbrou-me que fosse tão grande e que tivesse tantas frigideiras e tantas panelas e tanta gente a trabalhar Passeávamos por Jaca, que me parecia uma cidade muito bonita, embora não tivesse praia. Não conseguia entender porque é que não havia praia, se estávamos de férias. A minha mãe levava-me à piscina municipal. Foi aí que me ensinaram a nadar, e foi lá que engoli muita água. Nesses anos, deu-se o boom das piscinas municipais. Todas as terras com mais de dez mil habitantes se emanciparam dos rios.

Espanha transformou-se em câmaras que construíam piscinas municipais. E esquecemo-nos dos rios, que acabaram os seus dias a servir de lixeiras.



Há muitos anos que essa pensão fechou. Não sei que será feito daquelas toalhas tão brancas, nem das frigideiras, nem das camas, nem dos móveis, nem dos faqueiros, nem dos lençóis.

As coisas também morrem.

A morte dos objectos é importante. Porque é o desaparecimento da matéria, a humilde matéria que nos acompanhou e esteve ao nosso lado enquanto a vida se ia cumprindo.»


Pelo que percebi, Ordesa, a palavra que surge em parêntesis retos depois do título, deve referir-se ao Parque Natural de Ordesa e Monte Perdido, em Aragão. Fica no Norte de Espanha, próximo de Jaca, a localidade referida no trecho escolhido.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A história do boi e do asno

Excerto de O homem mais rico da Babilónia, de George S. Clason (pp. 72-73)


«Nunca ouviu falar do agricultor de Nínive que conseguia entender a linguagem dos animais? Suponho que não, pois não é propriamente o tipo de história que se conta a alguém que se dedica à fundição do bronze. Mas vou contar-lhe para que saiba que pedir emprestado e emprestar vai muito para além do simples facto de o ouro passar das mãos de uma pessoa para as mãos de outra. 

«Esse agricultor, que conseguia entender o que os animais diziam uns aos outros, detinha-se todas as noites no quintal da sua propriedade para os ouvir a conversar. Uma noite ouviu o boi queixar-se dos rigores da sua sorte:

- Trabalho que nem um mouro, puxando o arado de manhã à noite. Por mais quente que esteja o dia, por mais cansadas que estejam as minhas pernas, por mais que o jugo esfole o meu pescoço, tenho que continuar. Tu, no entanto, és uma criatura que tem as suas horas descanso. Cobrem-te com um manto colorido e nada mais fazes do que transportar o nosso amo aos lugares aonde ele deseja ir. Quando ele não sai, ficas o dia todo a comer relva. 

«O asno, apesar dos teus famosos coices, era bom companheiro e simpatizava com o boi. 

- Meu bom amigo - replicou -, o teu trabalho é de facto muito pesado e gostaria de te ajudar. Por isso, dir-te-ei como podes fazer para ter um guia de descanso. De manhã, quando o escravo vier amarrar-te ao arado, deita-te no chão e geme o mais que puderes, para que ele diga que estás doente e não estás em condições de trabalhar.

«O boi assim fez e no outro dia o escravo foi ter com o agricultor para comunicar que o boi estava doente e que não podia puxar o arado.

- Nesse caso - disse o agricultor - use o asno, pois o serviço não pode ficar por fazer.

«Durante o dia todo, o asno, que só quisera ajudar o amigo, viu-se obrigado a dar conta do recado do outro. À noite, depois de o desamarrarem do arado, tinha o coração amargurado, as pernas bambas e o pescoço todo esfolado. 

«O agricultor deixou-se ficar no pátio da quinta a ouvir a conversa entre ambos. 

«O boi foi o primeiro a falar:

- És um bom amigo. Devido ao teu sábio conselho, tive um dia de descanso.

- E eu - retorqui o asno - sou como essas pessoas de bom coração que começam por ajudar o amigo e acabam por ser obrigadas a fazer as tarefas dele. A partir de agora, puxa o teu próprio arado, pois ouvi o amo ordenar aos escravo que tem envie para abate se ficares novamente doente. Oxalá que faça mesmo isso, pois és um preguiçoso.

«A partir de então não se falaram mais, tendo o episódio posto um ponto final a amizade entre os dois. Sabe qual é a moral desta história, Rodan? [...] Apenas isto: se deseja ajudar um amigo, faça-o mas de modo que os fardos dele não sejam colocados sobre os seus ombros.»

A magia dos cabelos e das unhas

Excerto de Histoire des Magies, por Kurt Seligmann, L'Encyclopédie Planète, pp. 48-49 (traduzido pelo Google tradutor com supervisão humana)

«Nem todos os livros de Zoroastro foram preservados, e apenas uma pequena parte do que resta pode ser atribuída ao próprio mago: são os dezassete salmos ou Gatahs. As regras de adoração e sacrifício são quase igualmente antigas. Os outros livros da religião dos magos contêm hinos, orações diárias e ritos litúrgicos. O conjunto de livros denominado Vendidad, uma compilação de ciência antidemoníaca, foi escrito na segunda metade do século V a.C. Contém rituais de um tipo mais puramente mágico do que os outros e que, por isso, requerem toda a nossa atenção: pois a teologia dogmática do Zoroastrismo é essencialmente religiosa, mas o ritual de lidar com os demónios é mágico. Dois exemplos ilustrarão o aspecto mágico dos ritos de purificação: o ritual do cabelo e das unhas, que descreveremos neste capítulo, e o aplicado ao Demónio Mosca, que veremos mais adiante.


Kurt Seligmann (1900-1962). Artista suíço, estudou Belas-Artes em Genebra e Florença. Juntou-se aos surrealistas em Paris, mas acabou por zangar-se com Breton, o mentor do movimento, depois de uma discussão em que Seligmann o acusou de saber pouco sobre o tarot. Quando a Segunda Guerra Mundial deflagrou na Europa, mudou-se com a mulher para os Estados Unidos, onde o casal acabou por comprar uma quinta. Seligmann montou o seu ateliê no antigo celeiro e constituiu uma coleção de livros raros de mgia e ocultismo. Foi nessa mesma quinta que morreu, num acidente surreal: estava a disparar contra os ratos quando escorregou na neve e disparou contra a sua própria cabeça...   



No décimo sétimo capítulo da Vendidad, lemos uma prescrição que diz respeito ao corte de unhas e cabelos, que, assim que são separados do corpo, pertencem ao Maligno como moradas de impureza.

O interesse que Zoroastro manifestou por cabelos e unhas não deixou de provocar comentários irónicos: quantas superstições havia neste sábio! É certo que ritos semelhantes existem entre tribos primitivas cujo nível de civilização é muito inferior ao dos iranianos da Antiguidade. Algumas tribos escondem os seus cabelos e unhas, ou queimam-nos em segredo com receio de que caiam nas mãos de feiticeiros que os utilizem para lançar feitiços maléficos sobre os seus antigos donos.

O nosso sentimento de condescendência em relação às superstições zoroastrianas diminuirá quando soubermos quantas crenças semelhantes ainda existem na Europa e na América. Os gaúchos do Chile enfiam os cabelos em fendas nas paredes, como os turcos. Os arménios escondem-nos em igrejas, ocos de árvores e colunas. Os camponeses franceses dos Vosges enterram-nos em segredo, juntamente com os seus dentes extraídos, e deixam uma marca no local do seu esconderijo, para que possam ser encontrados no dia da ressurreição. Em Drumconrath, na Irlanda, as palavras das Escrituras de que todos os fios de cabelo de cada pessoa são contados pelo Todo-Poderoso são levadas à letra, e os fios cortados são separados para serem recuperados no Juízo Final. O bom povo de Liège, na Bélgica, retira cuidadosamente os cabelos dos pentes por temer que caiam nas mãos das bruxas.

A ideia de Zoroastro de que o cabelo e as unhas geram insetos e outros animais não era sua. Esta crença era mais antiga que a Pérsia e perdurou até ao século XVI d.C. Acreditava-se que os cabelos das mulheres cobertos de estrume se transformavam em cobras. No seu livro sobre bruxaria, publicado em 1603, o famoso juiz Henri Boguet recorda a opinião de São Tomás, que acreditava que os ramos de madeira podre poderiam sofrer a mesma transformação mágica. Embora Paracelso tenha afirmado: nihil est sine spermate — nada existe sem semente —, a antiga superstição sobreviveu até à época de Leibniz e Newton. Ainda hoje, na Bretanha, se acredita na geração espontânea de insetos: os pelos levados pelo vento transformam-se em moscas.

Cobras, insetos, sapos, piolhos, moscas etc. eram considerados animais nascidos da corrupção e não da germinação, daí as suas ligações com poderes infernais. Segundo Zoroastro, foram criados por Arimã, uma vez que nada de imperfeito poderia vir de Ormuzd. No Cristianismo, a imperfeição era atribuída ao Diabo, que a tradição popular nunca retrata numa forma humana perfeita: coxeia ou tem cascos fendidos que revelam a sua verdadeira natureza. Satanás, tal como Arimã, era o mestre dos animais impuros. Não deu aos seus seguidores um piolho de prata como símbolo da sua amizade?

Esta crença na particular corruptibilidade dos cabelos e das unhas é muito misteriosa, porque a realidade prova o contrário: na sepultura, continuam a crescer durante algum tempo, apesar da decomposição do cadáver.

O cristianismo, tal como o zoroastrismo, estabeleceu uma ligação entre o cabelo e o inferno. Os judeus piedosos não têm melhor opinião sobre as unhas, e é por isso que as cortam o mais curtas possível: para eles, as unhas, habitadas pelo mal, são a única parte do corpo incapaz de servir a Deus. Em Madagáscar, os nativos acreditam que o diabo reside debaixo de unhas mal aparadas. 

«As bruxas», diz Paracelso, «dão a Satanás os seus cabelos como garantia do contrato que fazem com ele. Mas o Maligno não desperdiça esses cabelos; corta-os muito finamente e mistura-os com o hálito do qual formará granizo; e é assim que normalmente descobrimos pequenos fios de cabelo no coração das pedras de granizo.» Esta ideia de que o cabelo é o refúgio por excelência dos encantos demoníacos seria adotada pelos caçadores de bruxas. Antes de as levarem à tortura, cortavam-lhes o cabelo, o que, ao que parece, era o suficiente para fazer muitas confessarem. O jurisconsulto Jean Bodin (1530-1596), por exemplo, relata na sua obra De la demonomanie des sorciers (1580) que, em 1485, quarenta bruxas confessaram os seus crimes em simultâneo depois de lhes terem rapado a cabeça. Para defender estas práticas, Bodin recorda que Apolónio de Tiana sofreu o mesmo destino quando o Imperador Domiciano o prendeu por bruxaria. Recorde-se que, após a libertação da França, em 1944, as mulheres que tinham tido relações com os alemães viram os seus caracóis caírem sob as tesouras dos patriotas: era inegavelmente um vestígio longínquo de magia primitiva, um rito purificador realizado numa pessoa tabu. Os cabelos destas mulheres estavam contaminados pelo vírus do tabu que os franceses tinham lançado - para usar o vocabulário de Freud - sobre os ocupantes.»


As moradas da imundície. 

1. Zaratustra (Zoroastro) perguntou a Ahura-Mazda (Ormuzd): «Ó Abura-Mazda! espírito benfazejo, criador do mundo material, tu, santo, qual é o ato mais horrível pelo qual um homem aumenta a força mais malévola dos Devas, como faria ao oferecer-lhes um sacrifício?» 

2. Ahura-Mazda respondeu: «É quando um homem cá em baixo, penteando o cabelo, rapando-o ou cortando as unhas, os atira para um buraco ou fenda. 

3. «Depois, por necessidade de observar os ritos legais, os Devas a que chamamos piolhos multiplicar-se-ão na terra e devorarão o trigo no trigal e as roupas no guarda-roupa.

4. «É por isso, Zaratustra!, que sempre que penteares o cabelo, rapares ou cortares as unhas aqui na terra, os levarás a dez passos do crente, a vinte passos do fogo, a trinta passos da água e a cinquenta passos dos feixes consagrados de Baresma (ramos sagrados).

5. De seguida, cavará um buraco, com dez dedos de profundidade se a terra for dura, e doze se for macia; colocarás o teu cabelo nele e dirás em voz alta estas palavras para atingir o demónio: «Na sua misericórdia, Mazda fez crescer as plantas». 

6. «Aí, traçarás três sulcos com uma lâmina de metal à volta do buraco, ou seis, ou nove, e cantarás o Ahura Vairya três vezes, ou seis, ou nove vezes.

7. «Para as unhas, cavarás um buraco fora da casa, tão fundo como a última falange do dedo mindinho; nele colocarás as unhas e dirás em voz alta estas palavras para atingir o demónio: «As palavras são ouvidas pelo homem piedoso na santidade, com bons pensamentos».