domingo, 12 de maio de 2024

A Roma antiga de Tom Holland

«Viver em Roma como membro da elite era, em grande medida, viver numa colina. Se César viesse a monopolizar o Palatino, o mais exclusivo de todos os bairros residenciais, havia então muitos outros cumes que podiam proporcionar refúgio do «rumor turbulento da grande Roma». Abaixo do senador na sua mansão lá no alto, onde as brisas eram refrescantes, estendia-se a mais espantosa paisagem urbana ao cimo da terra. Cobria quilómetros, numa imensa aglomeração de mármore e tijolo: clamorosa, pestilenta, envolvida em fumo. Nenhuma outra cidade na história fora alguma vez tão vasta como era agora Roma.

Vivia ali mais de um milhão de pessoas, comprimidas em poucos quilómetros quadrados - mais do que toda a população da Dácia. Poucas passavam os seus dias como os senadores, rodeadas de jardins, fontanários e o que havia de mais moderno em decoração de interiores. A procura de alojamento era inexorável e predatória para isso. O mercado imobiliário em Roma era um exercício de exploração. «Não há nenhum lugar onde se pague mais por um quarto miserável.»,12 A renda cobrada nos quarteirões residenciais onde a maior parte da plebe encontrava alojamento era classificada com uma precisão impiedosamente exigente. Quanto mais alto o andar, maior a probabilidade de os respetivos inquilinos sentirem os quartos tremer quando passavam os carros na rua, os verem desmoronar-se em caso de sismo ou perderem o acesso à rua por causa de um incêndio. O estrondo de edifícios a desabar era um dos sons mais distintivos da cidade. E, por isso, também o som de pranto: eram muitos os bairros em que «o choro pelos falecidos constitui um ruído de fundo constante». Viver em Roma, essa capital de um império ímpar e pacífico, era viver na sombra da morte.

Até andar pela cidade era, para muitos romanos, ficar com a própria vida em risco. As ruas eram gordurosas e escorregadias e, muitas delas - apesar da tentativa de Nero de melhorar a infraestrutura urbana - eram tão tortuosas e estreitas como sempre haviam sido. Os ricos, transportados nas suas liteiras acima dos apertos das multidões, pareciam navios a elevarem-se numa tempestade; os pobres, a sofrerem cotoveladas aqui, a serem derrubados por traves-mestras ali, sabiam que qualquer escorregadela, no meio da compressão generalizada, poderia facilmente revelar-se fatal. Até no Capitólio não era inédito que houvesse quem fosse mortalmente pisado. Em bairros mais insalubres, onde carros muito sobrecarregados com materiais de construção se debatiam continuamente para percorrer as ruas sinuosas, os engarrafamentos acarretavam riscos particulares. «Suponha-se que um eixo se partia sob o peso carregado e uma avalanche de mármore se abatia sobre uma multidão densa, o que restaria então dos corpos? Que membros, que ossos seriam discerníveis?»


Não havia maneira de legislar contra tais acidentes. Ainda que os veículos de mercadorias pesadas tivessem sido interditos em Roma durante as horas o diurnas, era impraticável proibir o transporte de materiais de construção: tanto a renovação da cidade como a ocupação da plebe dependiam disso. No entanto, a própria legislação que existia apenas criava os seus próprios problemas. O estrépito das carroças ao longo da noite garantia que Roma era uma cidade que nunca dormia. Isto, por sua vez, dava lugar aos seus próprios perigos. A medida que a noite caia, as lojas eram entaipadas e os cães ficavam quietos, também o ritmo das ruas se tornava mais sombrio em todos os sentidos. Um homem importante, embrulhado na sua capa escarlate e guardado por um numeroso séquito de rufiões, todos com tochas acesas, não tinha de se preocupar; porém, nem toda a gente podia comportar tal proteção.
A ambiência em Roma era muitas vezes ameaçadora, sobretudo depois do pôr do sol. Era tal a reputação dos setores mais sórdidos da capital, onde prosperavam o jogo e a prostituição, que se dizia
que Nero e Otão tinham andado por lá em jovens, apenas pela diversão de espancarem os transeuntes. De todo o modo, os assaltantes podiam estar emboscados em qualquer lado e as rixas de rua não se confinavam a tabernas e bordéis. A alvorada revelava invariavelmente cadáveres que juncavam as ruas da capital, prostrados em charcos de sangue. Por vezes, eram recolhidos por aqueles que os tinham amado, para serem chorados e cremados; outras vezes, ficavam onde tinham tombado, para serem varridos com o lixo.

O próprio Júpiter decretara que cadáveres, tal como os excrementos, deviam ser depositados para lá dos limites sagrados da idade. O asseio seguia-se à piedade. Desde o encontro de Numa com Egéria, esta fora uma máxima duradoura do povo romano. Inevitavelmente, o desafio de manter as ruas varridas, de prover esgotos capazes de servir toda a cidade, de garantir que a água não estagnava, mas antes corria fresca e límpida sempre que fosse precisa, a borbulhar em fontanários, a fluir de canos, era inexorável. O maior sistema de drenagem de Roma tinha sido construído nos tempos dos reis e os seus aquedutos mais emblemáticos durante a república. No entanto, a infraestrutura mais importante da cidade tinha uma origem mais recente. Uma sucessão de Césares, a governar uma cidade que parecia eternamente em perigo de desabar sob o crescimento explosivo da sua população, tinham patrocinado projetos de engenharia em escala verdadeiramente titânica. «Calcule-se a quantidade de água que abastece os edifícios públicos, os banhos, as piscinas, os canais, as residências privadas, os jardins e as propriedades suburbanas; tenha-se em conta a que distância a água tem de viajar até chegar ao seu destino; vejam-se as fileiras de arcos, os túneis que atravessam montanhas, as pontes que nivelam os vales mais profundos e não nos resta alternativa senão reconhecer que não há nada mais notável no mundo.»

Quando o tio de Plínio, mais para o fim da sua enciclopédia, deixou esta opinião, fê-lo com a autoridade de um homem que compilara listas de cada maravilha no cosmos. Contudo, os aquedutos que eram certamente algo sem par- não chegavam a toda a gente na cidade. A plebe, nas suas habitações sobrelotadas, tinha de carregar a água até aos andares superiores e, depois, carregar os dejetos para cisternas cobertas lá em baixo. Não importava o cuidado que se punha na decantação da urina vasilhas,
a fim de ser usada por pisoadores no tratamento de tecidos, e não importava a assiduidade com que os grupos de escravos públicos podiam transportar, durante a noite, excrementos para os campos à volta da cidade, para serem usados por agricultores como fertilizante: o cheiro nauseabundo nunca ficava totalmente arredado dos limites da cidade. Misturando-se com poeira, suor, o incenso
oferecido aos deuses, o fumo orgânico das oficinas e os odores de uma multiplicidade inumerável de fogueiras para cozinhar, fazia tanto parte de Roma que viver lá era quase não dar por ele. O fedor apenas se tornava insuportável em períodos de epidemias e outras doenças, quando a cidade ficava envolvida por emanações pútridas. Quanto mais diarreia houvesse, mais cadáveres; e quantos mais cadáveres, mais emanações pútridas. Então, o povo olhava para o César e César olhava para os deuses». 

Tom Holland, Pax - Guerra e Paz na Idade de Ouro de Roma
(Vogais) págs. 343-347

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