quarta-feira, 19 de março de 2014
Jacques Wilhelm, Paris no tempo de Luís XIV (Companhia das Letras)
O reinado de Luís XIV foi particularmente longo - durou de 1660 a 1715 - e marcou uma época de classicismo (a esse respeito, ver Barroco e Classicismo, de Victor L. Tapié). Mas cabe dizer que o monarca se estabeleceu em Versalhes, a alguns quilómetros de Paris, o que significa que o brilho da corte não irradiou da capital, com tudo o que isso implica em termos de encomendas artísticas e protecção, por exemplo, de escritores. Ficam abaixo algumas passagens do livro interessantíssimo de Jacques Wilhelm, da colecção A Vida Cotidiana (de que já referimos A Holanda no Tempo de Rembrandt).
O meu exemplar veio de um sebo (o nome dado aos alfarrabistas, vendedores de livros usados, no Brasil) do Rio de Janeiro, juntamente com a biografia de Freud por Peter Gay, ambos gentilmente oferecidos por MM em troca de uma garrafa de vinho do Douro.
As primeiras dezenas de páginas são ocupadas por descrições pormenorizadas (com base em gravuras, pinturas e plantas), edifício a edifício, e por isso algo cansativas, da cidade, na linha da famosa descrição de Paris feita a partir do topo da Nôtre-Dame, que ocupa algumas páginas em Nôtre-Dame de Paris, de Victor Hugo.
Agora as citações:
«O local reservado a esses divertimentos náuticos era o balneário da Porte Saint Bernard, diante do Arsenal, balneário que Henrique IV lançara na moda e onde ele se mostrava completamente nu aos olhos de seus súditos. Esse restrito costume ainda continuava em uso na época de Luís XIX, devido aos períodos de intenso calor. No entanto, o rei tinha medo da água e não imitou o seu ancestral», p. 47
«O feno, na época tão indispensável para os cavalos quanto hoje a gasolina para os automóveis, era desembarcado num porto particular, antes de tomar imediatamente o caminho das estrebarias parisienses», p. 50
«Todos os autores daquele tempo descreveram o mau cheiro e a 'lama de Paris', que quando manchava as roupas, 'só desaparecia junto com as peças'», p. 51
«Em 1670 um desconhecido enviou ao rei um longo relatório, propondo a instalação [...] de cadeiras de retrete» «Não se deu nenhuma continuidade a essa interessante iniciativa, de modo que os cortesãos, os magistrados e as massas continuaram a se aliviar ao longo dos muros e dos corredores, como faziam em Versalhes, sem se preocuparem com a presença do rei», p. 52
«Do tempo longínquo em que, para as festas, fabricavam-se chapéus de flores naturais, as cabeleireiras floristas haviam guardado esse nome», p. 85
«Em 1681, seu superior [da Companhia do Santíssimo Sacramento] era o duque de Mazarino, esposo de Hortense Mancini e que estava à beira da loucura. Levando sua devoção ao extremo, ele desejava arrancar os trinta e dois dentes de sua filha, retirando-lhe a beleza para assegurar-lhe a salvação», p. 111
«A igreja era o único palácio ao qual o povo tinha acesso, era o principal teatro também»; «Mas, por mais magníficas que hoje nos pareçam, ainda assim chegaram até nós despojadas da maior parte de seu mobiliário e obras de arte», p. 113
«Foi marcando o compasso com a sua bengala, conforme um estranho costume da época [...] que em Janeiro de 1687 Lully feriu o pé, cuja infecção acabaria provocando sua morte», pp. 116-117
«Segundo uma tradição medieval, o coração do defunto era retirado do corpo e conservado numa outra igreja», p. 119 (no caso dos reis)
«A abundância dos círios [velas] ao redor dos catafalcos deu-lhes o nome de câmaras-ardentes», p. 120
«Os marginais da Cour des Miracles [de quem também fala Victor Hugo em N-DdeP] haviam roubado uma imagem de Deus Pai, diante da qual eles se ajoelhavam e rezavam a fim de terem mais sucesso em seus golpes sujos», p. 124
«Até 1681, as bailarinas eram homens disfarçados», p. 143
Devido à ira do arcebispo «houve necessidade de uma ordem do rei para que Molière fosse enterrado - à noite, à luz dos archotes - no Cemitério Saint-Joseph, reservado aos loucos, aos suicidas e às crianças não batizadas», p. 144
«Acredita-se que os cafés surgiram em Paris somente em 1669, lançados na moda pela embaixada turca, cujos menores atos e gestos haviam excitado a curiosidade pública. Os arménios foram os primeiros a ter a ideia de vender o café já preparado, em estabelecimentos que naturalmente receberam o mesmo nome. [...] A reputação dos cafés não era das melhores. Ali as pessoas não apenas fumavam e, apesar dos editos, jogavam, mas, além disso, os médicos consideravam que o café tornava os homens incapazes de procriar», pp. 151-152
«Nos Halles, na terça-feira gorda, as vendedoras às vezes se fantasiavam de homem ou os homens de mulher, com os trajes mais extravagantes de todas as épocas e lugares. Alguns se fantasiavam de monge, cuja embriaguez e devassidão formavam um quadro pouco edificante», pp. 162-163
«Uma parte dos fossos fora cedida a agricultores que neles cultivavam flores e legumes. Em outros pontos, eles eram usados para diversos jogos, em particular o arco e flecha. À noite, enfim, casais [...] faziam folguedos nos taludes relvados», pp. 166-167
«'Hoje eu estive no Pays Latin, que é a Universidade', escreve em 1650 o médico Guy Patin. [...] Era o Pays Latin, porque professores e estudantes só falavam essa língua», p. 169
«O anfiteatro, ou teatro anatómico, [...] servia ao curso de anatomia e de cirurgia, os quais durante o inverno, a única estação em que se podiam conservar os cadáveres, geralmente de condenados à pena capital, eram acompanhados de dissecações», p. 177
«Como todos os aprendizes, a criança trabalhava como criado no ateliê, limpava as paletas, moía o material para fazer as tintas e preparava as telas durante muito tempo antes de ser autorizada a pegar no pincel», p. 193
«Os salons foram uma das grandes inovações do reinado de Luís XIV. Até então, jamais uma exposição de arte aberta a todos havia sido realizada em França. Aliás, talvez em nenhum país», p. 203
«Antes de 1660, alguns palacetes comportavam um aposento de banhos [...]. Mas como o rei só tomava banho sob ordem médica, limitando-se a passar água de colónia nas mãos e no rosto, um exemplo tão nobre foi imitado», pp. 217-218
«De fato, roubava-se tudo, os casacos, que deram nome aos 'tira-lãs', e até as perucas da cabeça dos passantes», p. 242
Jacques Wilhelm
Paris no Tempo do Rei Sol
Col. 'A Vida Cotidiana'
Companhia das Letras (ed. original Hachette)
262 págs., 4 estrelas - leitura saborosa e repleta de informações interessantes
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