quarta-feira, 5 de novembro de 2025

George Orwell, a permanência e a aniquilação

«O sol deslocara-se no céu e as imensas janelas do Ministério da Verdade, agora que a luz já não incidia sobre elas, pareciam lúgubres seteiras de uma fortaleza. O coração de Winston estremeceu ante a enorme forma piramidal. Era demasiado sólida, era impossível ser abalada. Nem mil mísseis poderiam derrubá-la. Interrogou-se de novo sobre para quem estaria a escrever o diário. E diante de si não havia morte, mas sim aniquilação. O diário ficaria reduzido cinzas e ele próprio a vapor. Só a Polícia do Pensamento leria o que ele escrevera antes de o varrer da existência e da memória. Como se poderia apelar ao futuro quando era impossível que qualquer vestígio nosso, mesmo uma palavra anónima escrevinhada num bocado de papel, pudesse sobreviver fisicamente?
[...]
Era um fantasma solitário que murmurava uma verdade que ninguém ouviria. Mas, enquanto ele a murmurasse, de algum modo obscuro a continuidade não seria quebrada. Não era por se fazer ouvir, mas sim por se manter mentalmente sã que uma pessoa prolongava a herança humana.»


George Orwell, 1984

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A música da tundra - a digressão de Richter pela Sibéria


 «A única música que se ouve na tundra é a chaleira a assobiar ao lume»

Anna Nerkagi, escritora nenetse e defensora dos direitos dos nativos, in Sophy Roberts, Os pianos perdidos da Sibéria, p. 213


Agora um interessante excerto sobre a digressão do grande Sviatoslav Richter pela Sibéria em 1986:

«Em 1986, o lendário pianista soviético Sviatoslav Richter pegou num pedaço de cartão com o mapa da URSS e, com um marcador azul escuro, desenheu uma estrada através da Sibéria, preenchendo os nomes de todos os locais que queria visitar. Enfiou o mapa na sua mala e partiu para atingir o seu objetivo - uma viagem de Moscovo ao Pacífico, e volta, deslocandose em parte por estrada e em parte de comboio, parando amiúde para realizar recitais de piano. Nesta digressão épica, foi acompanhado pela sua amiga filóloga e escritora Valentina Chemberdzhi que, subsquentemente, publicou as suas recordações da viagem.

Richter tinha conhecimento das intensas digressões pelos estrangeiro feitas por Franz Liszt - e a comparação é esclarecedora. Os dois homens suportaram estradas infernais cheias de buracos para chegarem os locais onde queriam tocar. Também tiveram ambos de se remediar que os instrumentos que lhes punham à frente, Liszt a tocar no chocalhante Tompkinson vertical na sala de um hotel irlandês e Richter em todo o tipo de equivalentes soviéticos nas pequenas cidades espalhadas pela Sibéria. Ao contrário do que afirma um mito popular, Richter não levou consigo o seu Yamaha preferido («é difícil imaginar um piano de cauda num yurt ou na taiga!», comentou Valentina Chemberdzhi). «Na Rússia profunda, nem sempre tive esses instrumentos excelentes - nada disso, mas não atenção», disse Richter. «De qualquer modo houve alturas em que toquei em pianos horríveis, e toquei extremamente bem.» 

Richter, que odiava voar, visitou Khabarovsk, Chita (onde procurou os pianos dos Dezembristas e não conseguiu encontrá-los), Ulan-Ude, Irkutsk, Krasnoiarsk e Burnaul, bem como inúmeras povoações pelo meio. E Abakan, nas margens do rio Ienissei, um artigo local descreveu o frenesi suscitado por Richter: pela primeira vez, os siberianos podiam ouvi-lo a tocar ao vivo. Entre os palcos, contaram-se escolas de música e salas de concerto locais. Os programas de Richter - mesmo os garatujados em folhas de papel e afixados pouco antes do espetáculo - esgotavam sempre rapidamente a lotação das salas, por vezes em menos de 30 minutos. «A sala ficava cheia só por as pessoas passarem informação de boca em boca. Isto não acontece não ocidente», comentou uma vez. Com Richter, a simplicidade era o que estava em causa. Gostava de tocar às escuras para o público se concentrar na música e não no intérprete. «A única coisa que importa é que as pessoas não venham por snobismo, mas sim para ouvirem a música», afirmou. Lendo o relato de Valentina Chemberdzhi, parece que o público siberiano de Richter compreendeu: as suas descrições animadas revelam o gosto genuíno das pessoas por uma arte musical ao vivo, que fora precisamente como Denis Matsuev me descrevera a Sibéria no início da minha investigação.»


Sophy Roberts, Os pianos perdidos da Sibéria, pp. 281-282

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A percepção silenciosa - Boulevard du Temple, de Daguerre

 «A perceção absolutamente silenciosa assemelha-se a uma imagem fotográfica com um tempo de exposição muito grande. A fotografia do Boulevard du Temple de Daguerre apresenta na realidade uma rua parisiense muito movimentada. Contudo, devido ao tempo de exposição extremamente longo, típico do daguerreótipo, tudo o que se move desaparece. Só é visível o que permanece parado. O Boulevard du Temple irradia uma calma quase aldeã», em que todo o ruído está proscrito. «Além dos edifícios e das árvores, apenas se vê uma figura humana, um homem a quem limpam os sapatos, e por isso está parado.» Apenas o longo e o lento se tornam realidade. «Tudo o que se apressa», tudo o que tem pressa – e todos nós temos pressa –, «está condenado a desaparecer. O Boulevard du Temple pode ser interpretado como um mundo visto através de um olho divino. Ao seu olhar redentor apenas aparecem os que permanecem em silêncio contemplativo [ou a engraxar os sapatos, acrescento eu]. É o silêncio o que redime.»

[VARIAÇÕES GOLDBERG, BWV 988, VAR. 25 E 21] Byung-Chul Han, A tonalidade do pensamento, p. 49 (ed. Crítica)


Boulevard du Temple, Louis Daguerre, 1838

O homem a engraxar os sapatos




René Char sobre Rimbaud e os vulcões

«Se os vulcões pouco mudam de lugar, a sua lava percorre o grande vazio do mundo trazendo-lhes virtudes que cantam nas suas feridas».



quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Ah, ah, ah...

Era uma pessoa tão cautelosa, tão cautelosa, mas tão cautelosa, que nunca saía do quarto sem antes bater à porta... 'Toc, toc, toc'



Aias do apocalipse

Por que são os submarinos nucleares tão temidos? Afinal, uma bomba não pode ser lançada a partir de um avião (como Hiroxima e Nagasáqui) ou de terra? Qual a diferença? Aqui fica a explicação, retirada de Guerra Nuclear - Um cenário, de Annie Jacobsen, provavelmente um dos livros mais perturbadores publicados nos últimos anos.




«Um submarino nuclear armado com bombas nucleares é um pesadelo. Um objeto tão perigoso para a existência do homem como um asteroide em rota de colisão com a Terra. Estes submarinos recebem muitos nomes: boomers, navios da morte, máquinas opressivas, aias do apocalipse. São impossíveis de localizar e estão armados até aos dentes. Cada um dos submarinos da classe Ohio do arsenal dos Estados Unidos pode lançar até 80 bombas nucleares em minuto e meio e desaparecer.
A Rússia mantém uma frota de capacidade aproximadamente equivalente.
Temíveis e venerados, são obras-primas de engenharia. Ecossistemas autossuficientes que geram a sua própria energia, fabricam o seu próprio oxigénio e a sua água potável e podem permanecer debaixo
de água quase indefinidamente ou até a tripulação ficar sem comida. Invisíveis para os satélites de reconhecimento, os submarinos circulam no oceano com impunidade. Porque a possibilidade de os detetar é zero, são imunes a um primeiro ataque, ou quase a qualquer ataque, até serem obrigados a subir à superfície no seu regresso ao porto.
Com um comprimento de dois campos de futebol, cada submarino da classe Ohio é capaz de lançar 20 mísseis balísticos submarinos - os terríveis SLBM. Com mais de 13 metros de comprimento, 2 metros
de diâmetro e um peso de quase 60 toneladas no momento do lançamento, cada SLBM está armado com múltiplas ogivas nucleares.
O poder de fogo de um destes submarinos pode destruir um país inteiro.
As capacidades de tiro do submarino nuclear diferem de maneiras significativas dos ICBM de base terrestre. Por serem indetetávels debaixo de água, podem aproximar-se bastante da costa de um país
e lançar um primeiro ataque, baixando o tempo entre lançamento e impacto de 26 a 33 minutos para uma fração disso. Os mísseis nucleares são lançados de submarinos de maneiras únicas. De longo
alcance (intercontinentais) e alcance mais curto, usando uma trajetória deprimida (mais baixa). A modo de exemplo, um submarino russo a rondar ao largo da costa oeste dos Estados Unidos pode lançar os
seus mísseis quase simultaneamente para alvos em todos os cinquenta estados, tudo de uma só vez. Isto é assim porque as múltiplas armas nucleares na ogiva de cada míssil podem ser dirigidas a alvos distintos que estão a centenas de quilómetros de distância. Esta é uma razão primária da política de Lançamento ao Alerta e porque a tríade nuclear - como a tríade nuclear da Rússia - permanece em
Alerta de Gatilho Fácil.
E é o motivo pelo qual o presidente tem uma janela de seis minutos para deliberar e decidir sobre um contra-ataque nuclear.
«Se Washington fosse atacada por um submarino russo a 1.000 quilómetros da nossa costa, o tempo de voo seria menos de sete minutos entre o lançamento e o impacto», previne Ted Postol. «O presidente não teria tempo de escapar e um "sucessor designado" teria então de assumir o comando nuclear.»»


quarta-feira, 30 de julho de 2025

Manuel Vilas, Em tudo havia beleza [Ordesa]

Depois de ler comentários entusiásticos, tive curiosidade de espreitar Em tudo havia beleza, de Manuel Vilas, autor que até aqui eu desconhecia.

Da leitura de algumas páginas 'salpicadas' aqui e ali, retive este trecho:

«Em finais dos anos sessenta, o meu pai levava-nos de férias para uma pensão numa povoação de montanha. A povoação era Jaca. Ele conhecia aquela pensão do seu trabalho como caixeiro-viajante. Dizia que se comia muito bem. Estava entusiasmado de nos levar lá. Estar lá com a família, estar com os seus no sitio em que habitualmente estava sozinho. Presentear-nos a sua descoberta.

Era isso que estava a fazer a oferecer-nos uma descoberta, uma vitória.

Era verdade que se comia bem, faziam uma tortilha à francesa deliciosa e misteriosa, com um sabor que nunca mais voltes a provar em nenhuma tortilha. Eu tinha sete anos na altura, pelo que estávamos em 1970, mais ou menos. A imagem que guardo desses anos implica uma dimenção incorpórea vejo coisas que brilham. vejo pó amarelo, móveis grandes e antigos em estado líquido, corpos irreais, cheiros sadios, mas cheiros falecidos. Antigamente, os cheiros eram melhores, acho eu; melhores não, talvez
mais naturais. A sala de refeições da pensão tinha um toque oitocentista, ou é assim que me lembro dela. As toalhas das mesas eram de bom tecido, muito brancas. As escadas que iam dar aos quartos eram de madeira. As portas dos quartos eram altas. As camas metiam-me medo. Ao jantar, ofereciam como sobremesa um pudim flã caseiro que era uma delícia. Deixavam-me entrar na cozinha. Nunca estivera
nama cozinha de restaurante e deslumbrou-me que fosse tão grande e que tivesse tantas frigideiras e tantas panelas e tanta gente a trabalhar Passeávamos por Jaca, que me parecia uma cidade muito bonita, embora não tivesse praia. Não conseguia entender porque é que não havia praia, se estávamos de férias. A minha mãe levava-me à piscina municipal. Foi aí que me ensinaram a nadar, e foi lá que engoli muita água. Nesses anos, deu-se o boom das piscinas municipais. Todas as terras com mais de dez mil habitantes se emanciparam dos rios.

Espanha transformou-se em câmaras que construíam piscinas municipais. E esquecemo-nos dos rios, que acabaram os seus dias a servir de lixeiras.



Há muitos anos que essa pensão fechou. Não sei que será feito daquelas toalhas tão brancas, nem das frigideiras, nem das camas, nem dos móveis, nem dos faqueiros, nem dos lençóis.

As coisas também morrem.

A morte dos objectos é importante. Porque é o desaparecimento da matéria, a humilde matéria que nos acompanhou e esteve ao nosso lado enquanto a vida se ia cumprindo.»


Pelo que percebi, Ordesa, a palavra que surge em parêntesis retos depois do título, deve referir-se ao Parque Natural de Ordesa e Monte Perdido, em Aragão. Fica no Norte de Espanha, próximo de Jaca, a localidade referida no trecho escolhido.