terça-feira, 16 de julho de 2024

A paleta de Renoir

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) em casa

«Dizer como era a sua paleta diz mais sobre isso do que todas as minhas explicações. Mas permita-me o leitor que lhe lembre, antes de mais, como costuma ser a paleta de um pintor. As cores amontoam-se nela de qualquer maneira, sobrepõem-se, misturam-se. A camada é tão espessa que deixa de se ver a madeira, Nessa amalgama é impossível isolar uma tonalidade pura, pelo que o pintor está sempre a acrescentar-lhe o conteúdo de mais um tubo que, uma vez dada a primeira pincelada, é absorvido pela massa informe. Erguem-se à sua volta regimentos de pincéis. Ele está sempre a abastecer-se dessa reserva, porque ao cabo de algumas aplicações estão todos empastados daquela amalgama multicolor. Quando o pintor já não consegue ter mão na confusão, raspa a paleta com uma faca e espreme para cima dela os tubos até à dobra. Tem uma gaveta cheia de tubos novos que em breve vão substituir os vazios. Esta descrição não é nenhuma crítica. Há grandes pintores que procedem desta maneira, chegando mesmo a aplicar a tinta directamente do tubo para a tela.

A paleta de Renoir era limpa «como uma moeda nova». Era uma paleta quadrada que se encaixava na tampa do estojo, que tinha a mesma forma. Num dos godés duplos, punha óleo de linhaça puro e no outro uma mistura de óleo de linhaça com essência de terebintina, em partes iguais. Numa mesa baixa, colocada ao lado do cavalete, tinha um copo cheio de essência de terebintina em que enxaguava o pincel, praticamente após cada aplicação de cor. Na caixa, e em cima da mesa, tinha alguns pincéis de reserva. Nunca tinha em uso mais do que dois ou três ao mesmo tempo. Mal começavam a ficar gastos, esborratavam, ou por qualquer outra razão deixavam de lhe proporcionar uma absoluta precisão de pincelada, deitava-os fora.

Exigia que destruíssem os pincéis velhos, não fosse ele pegar em algum deles por engano enquanto trabalhava. Na mesinha havia também panos limpos, com os quais secava de vez em quando o pincel.

 A caixa de pintura de Renoir, Museu d'Orsay

A caixa, tal como a mesa, estava sempre perfeitamente arrumada Os tubos de tintas eram sempre enrolados a partir da dobra, de forma obter, ao espremê-los, a quantidade exacta de tinta pretendida No princípio da sessão de trabalho, a paleta, que tinha sido limpa no fim da sessão interior, estava imaculada. Para a limpar, começava por raspá-la, vertendo os resíduos para um papel, que atirava logo para o lume. Em seguida, esfregava-a com um pano embebido em essência de terebintina até que não houvesse o mínimo resquício de tinta na madeira. O pano ia também para o lume. Os pincéis eram lavados com água fria e sabão. Recomendava que se esfregassem suavemente os pelos na palma da mão. De vez em quando encarregava-me desta operação, o que me enchia de orgulho.

Renoir descreveu pessoalmente a composição da sua paleta numa nota que a seguir transcrevo e que data, evidentemente, do período impressionista:

Branco de prata, amarelo de crómio, amarelo-de-nápoles, ocre amarelo, terra-de-siena natural, vermelhão, laca de garança, verde-veronês, verde-esmeralda, azul-cobalto, azul-ultramarino, espátula,
raspadeira, essência, tudo o que é necessário para pintar O ocre amarelo, o amarelo-nápoles e a terra-de-siena são meros tons intermédios que são dispensáveis, pois podem fazer-se com outras cores.
Pincéis redondos de pêlo de marta, pincéis chatos de seda. 

Registe-se a ausência do preto, «a rainha das cores», como ele próprio iria proclamá-lo no seu regresso de Itália.

O Almoço dos remadores, 1880-1881, The Phillips Collection, Washington D.C.

À medida que se aproxima do fim da vida irá simplificar ainda mais a sua paleta. A ordem de que me lembro na época em que pintava As Grandes Banhistas do Louvre, no ateliê de Les Collettes, era
a seguinte: começando de baixo, junto da abertura para o polegar, o branco de prata, em quantidade generosa, o amarelo-de-nápoles num montículo minúsculo, tal como todas as cores que se seguem - o
ocre amarelo, a terra-de-siena, o ocre vermelho, a laca de garança, a terra verde, o verde-veronès, o azul-cobalto, o negro-marfim. Esta selecção de cores não era inalterável. Eu vi Renoir, embora em raras
ocasiões, aplicar vermelhão chinês que punha na paleta entre a laca de garança e a terra verde. Nos últimos tempos de vida, muitas vezes simplificou ainda mais e para alguns quadres dispensou o ocre vermelho e a terra verde. Nem Gabrielle nem eu o vimos usar o amarelo de crómio. Esta exiguidade de meios era impressionante. Os montículos de tinta pareciam perdidos na superfície de madeira, rodeados de vazio. Renoir encetava-os com parcimónia, com respeito. Era como se achasse que iria ofender Mullard, que lhe tinha preparado meticulosamente aquelas cores, se atafulhasse a paleta com elas e depois não as usasse até à mais pequena parcela.»

Jean Renoir, PIERRE-AUGUSTE RENOIR, MEU PAI pp. 336-338
Ed. Bizâncio

John Berger, Porquê olhar os animais?


Alguns excertos do livro de John Berger:

«Na sua maioria, os pensadores do século XIX raciocinavam mecanicamente, porque o seu era o século das máquinas. Pensavam em termos de cadeias, ramificações, linhas, anatomias comparativas, mecanismos de relógio, grelhas. Tinham conhecimentos sobre potência, resistência, velocidade, competição. Consequentemente, fizeram muitas descobertas sobre o mundo material, sobre instrumentos e produção». p. 69

«Tudo o que deriva da capacidade dos macacos para balançarem de ramo em ramo - braquiação, como lhe chamam os zoólogos - distingue-os. Tarzan só balançava nas lianas - nunca usou os seus braços pendentes como se fossem pernas, caminhando de lado.

Contudo, na história evolutiva, esta diferença é, na realidade, um laço. Os macacos caminham sobre os quatro membros ao longo dos topos dos ramos e usam a cauda para se dependurarem. Os ancestrais comuns ao homem e aos macacos começaram, em vez disso, a usar os seus braços - começaram a tornar-se braquiais. Segundo reza a teoria, isto deu-lhes a vantagem de alcançar a fruta nas extremidades dos ramos!». pp. 72-73

«a classe dominante britânica no século XVIII não apreciava as vistas de mar» p. 91

«Todas as linguagens da arte foram desenvolvidas como uma tentativa de transformar o instantâneo em permanente.» 93

«Temos apenas um tempo breve para agradar aos vivos, toda a eternidade para agradar aos mortos.» (Antígona)

A matriz marxista de Berger está bem vincada no ensaio 'Os comedores e o comido' (interessante, mas cheio de preconceitos) e em passagens como:

«A vida urbana tendeu sempre a produzir uma visão sentimental da natureza. Pensa-se na natureza como um jardim, ou uma vista enquadrada por uma janela, ou uma arena de liberdade. Camponeses, marinheiros, nómadas sabiam mais. A natureza é energia e luta.»

«Há alguns anos, quando ponderava a face histórica da arte, escrevi que avaliava uma obra de arte de acordo com a possibilidade de esta ajudar ou não os homens do mundo moderno a reclamarem os seus direitos sociais. Mantenho-me fiel a isso.» p. 93