quinta-feira, 22 de maio de 2014
terça-feira, 20 de maio de 2014
Jacob Burckhardt, A civilização italiana do Renascimento
Aqui ficam alguns excertos de A civilização italiana do Renascimento, obra do historiador suíço Jacob Burckhardt escrita em 1860 e que terei lido há cerca de dez anos. Ali se encontram passagens memoráveis sobre a violência e a intriga política no Renascimento, sobre os 'jardins zoológicos' privados dos grandes senhores, a maledicência, o nascimento de grandes obras de arte e os estranhos costumes da época. Desde que Burckhardt escreveu a sua obra, o Renascimento nunca mais foi visto como uma época dominada pela paz, a prosperidade e a razão. Um dos meus excertos favoritos, sobre um padre homicida, aparece no final. As traduções são todas da autoria do Comilão (a foto também).
"Em muitos dos seus principais méritos os Florentinos são a
matriz e o mais precoce tipo de Italianos e Europeus modernos em geral; também
o são em muitos dos seus defeitos. Quando Dante compara a cidade que está
sempre a emendar a sua constituição com o homem doente que está continuamente a
mudar de postura para escapar à dor, toca com a comparação uma característica
permanente da vida política de Florença.
Sob Adriano VI (1521-3), os escassos e tímidos
melhoramentos, levados a cabo face à grande Reforma Alemã, vieram demasiado
tarde. Ele pouco mais podia fazer do que proclamar o seu horror ao curso que as
coisas tinham tomado até aqui, de simonia, nepotismo, prodigalidade, roubo, e
libertinagem. O perigo do lado dos Luteranos não era de algum modo o maior; um
perspicaz observador de Veneza, Girolamo Negro, revelou os seus receios de que
um rápido e terrível desastre iria suceder à própria cidade de Roma.
Sob Clemente VII todo o horizonte de Roma estava preenchido
por vapores, como aquele véu pesado com que o sirocco cobriu a Campagna, e que
tornou os últimos meses de verão tão mortais. O Papa não era menos detestado em
casa do que no estrangeiro. As pessoas sensatas estavam tomadas de ansiedade,
eremitas apareceram sobre as ruas e praças de Roma, prenunciando o destino de
Itália e do mundo, e chamando o Papa pelo nome de Anticristo; a facção dos
Colonna ergueu a sua cabeça desafiadoramente; o indomável Cardeal Pompeo
Colonna, cuja mera existência era uma ameaça permanente ao Papado, ousou
surpreender a cidade em 1526, esperando, com a ajuda de Carlos V, tornar-se
Papa naquele local e naquele momento, logo que Clemente fosse morto ou
capturado. Foi pouca sorte para Roma que este conseguisse escapar para o Castel
Sant’Angelo, e que o destino para o qual ele próprio estava reservado possa bem
ser chamado pior do que a morte.
A instituição então desenvolvida durante os últimos anos de
Clemente VII, e sob Paulo III, Paulo IV, e os seus sucessores, em face da defecção
de meia Europa, era uma nova, regenerada hierarquia, que evitou todos os
grandes e perigosos escândalos dos tempos anteriores, particularmente o
nepotismo, com as suas tentativas de alargamento territorial, e que, em aliança
com os príncipes Católicos, e impelida por uma jovem força espiritual,
encontrou a sua tarefa principal na recuperação do que havia sido perdido.
Neste sentido pode dizer-se em perfeita verdade que a salvação moral do papado
se deve aos seus inimigos mortais. E agora também a sua posição política,
embora sob a tutela de Espanha, se tornava intocável; quase sem esforço herdou,
pela extinção dos seus vassalos, a linha legítima dos Este e a Casa dos Della
Rovere, os ducados de Ferrara e Urbino. Mas sem a Reforma – se, de facto, é possível
concebê-la de fora – todo o estado eclesiástico teria há muito passado para
mãos seculares.
Patriotismo
Em conclusão, consideremos brevemente o efeito destas
circunstâncias políticas no espírito da nação em conjunto.
É evidente que a incerteza política geral em Itália, no
decorrer dos séculos XV e XVI, era de modo a excitar nos melhores espíritos do
tempo uma oposição e desgosto patriótico. Dante e Petrarca, nos seus dias,
proclamaram alto uma Itália comum, o objecto dos mais altos esforços de todos
os seus filhos. Pode objectar-se que este era apenas o entusiasmo de uns poucos
homens altamente instruídos, que a massa do povo não partilhava; mas
dificilmente pode ter sido de outra forma mesmo na Alemanha, muito embora em
nome pelo menos esse país estivesse unido, e reconhecesse no Imperador a cabeça
suprema. As primeiras experiências patrióticas da língua Alemã, se excluirmos
alguns versos dos Minnesänger,
pertencem aos humanistas do tempo de Maximiliano I e depois, e soam como um eco
das declamações italianas. E porém, na realidade, a Alemanha era há muito uma
nação num sentido mais verdadeiro do que a Itália alguma vez havia sido desde
os dias de Roma. França deve a consciência da sua unidade nacional sobretudo
aos seus conflitos com os Ingleses, e Espanha nunca logrou absorver
definitivamente Portugal, apesar da relação próxima entre estes países. Para
Itália, a existência do Estado eclesiástico, e as condições somente sob as
quais ele podia continuar, eram um obstáculo permanente à unidade nacional, um
obstáculo cuja tentativa sequer de remoção parecia inútil. Quando, portanto, no
decurso político do século XV, o nome da pátria comum é enfaticamente
mencionado, é-o na maioria dos casos para aborrecer qualquer outro Estado
Italiano. Mas estes desgostosos e profundamente sérios apelos ao sentimento
nacional não voltaram a ser ouvidos até mais tarde, quando o país estava
inundado de Franceses e Espanhóis. O sentido deste patriotismo local pode
dizer-se em alguma medida ter tomado o lugar deste sentimento, embora não fosse
senão um pobre equivalente dele.
Uma prova significativa do interesse alargado na história
natural é encontrada no zelo que se exibiu num período precoce pela colecção e
estudo comparativo de plantas e animais. Itália reivindica ter sido o primeiro
criador de jardins botânicos, embora possivelmente eles tenham servido um fim
eminentemente prático, e a própria reivindicação da prioridade possa ser
discutida. É de longe de maior importância que príncipes e homens ricos, ao
dispor os seus jardins de recreio, instintivamente tenham feito questão de
coleccionar o maior número possível de plantas em todas as suas espécies e
variedades. (...) Ao lado de um cuidadoso cultivo de frutos para os propósitos
da mesa, encontramos um interesse pela planta em si, na medida do prazer que
proporciona ao olho. A história da arte ensina-nos em quão tardio período esta
paixão pelas colecções botânicas foi posta de lado, e deu lugar ao que era
considerado o estilo pitoresco de jardinagem paisagística.
As colecções, também, de animais estrangeiros não apenas
gratificavam a curiosidade, mas serviam os propósitos da observação. A
facilidade de transportação dos portos do sul e leste do Mediterrâneo, e a
amenidade do clima italiano, fizeram com que fosse praticável comprar os
maiores dos animais do sul, ou aceitá-los como presentes dos Sultões. As
cidades e príncipes ansiavam especialmente por manter leões vivos, mesmo onde o
leão não era, como em Florença, o símbolo do Estado. A caverna dos leões era
geralmente dentro ou perto do palácio do governo, como em Perugia e Florença;
em Roma, ficava na encosta do Capitólio. As feras por vezes serviam de
executoras de julgamentos políticos, e sem dúvida, à parte disto, mantinham
vivo um certo terror no imaginário popular. A sua condição era também tomada
por presságio de bem ou mal. A sua fertilidade, especialmente, era considerada
um sinal de prosperidade pública (...). As crias eram frequentemente oferecidas
a estados aliados e príncipes, ou a condottieri
como recompensa do seu valor. A juntar aos leões, os Florentinos começaram
muito cedo a manter leopardos, para os quais foi nomeado um tratador especial.
Borso de Ferrara costumava pôr o seu leão a lutar com touros, ursos e javalis
selvagens.
Pelo final do século XV, todavia, verdadeiras instalações
destinadas a albergar as colecções de animais (serragli), agora julgadas parte integrante dos equipamentos
adequados a uma corte, eram mantidas por muitos dos príncipes. ‘Pertence à
posição do magnânimo’, diz Matarazzo, ‘manter cavalos, cães, mulas, falcões, e
outros pássaros, bobos da corte, cantores, e animais estrangeiros’. As jaulas
de animais em Nápoles, ao tempo de Ferrante, possuíam até uma girafa e uma
zebra, presenteados, ao que parece, pelo governador de Bagdade. Filippo Maria
Viscontti possuía não apenas cavalos que lhe haviam custado 500 ou 1,000 moedas
de ouro cada, e valiosos cães ingleses, mas um número de leopardos trazidos de
todas as partes do Leste; a despesa com os seus pássaros de caça, que eram
capturados dos países da Europa Setentrional, ascendia a 3,000 moedas de ouro
por mês. O rei D. Manuel o Venturoso de
Portugal sabia bem o que estava a fazer quando presenteou Leão X com um
rinoceronte e um elefante. Foi sob estas circunstâncias que os fundamentos de uma
zoologia e botânica científicas foram assentes. pp. 188-189
(...) O famoso cardeal Ippolito Medici, bastardo de
Giuliano, Duque de Nemours, mantinha na sua estranha corte uma tropa de
bárbaros que falavam nada menos do que vinte línguas diferentes, e que eram
todos eles perfeitos espécimens das suas raças. Entre eles havia incomparáveis voltigeurs do melhor sangue dos Mouros
Norte Africanos, arqueiros Tártaros, lutadores Negro, mergulhadores Indianos, e
Turcos, que geralmente acompanhavam o cardeal nas suas expedições de caça. p.
190
O mais completo e instrutivo tipo da tirania do século XIV
encontra-se sem dúvida entre os Visconti de Milão, desde a morte do arcebispo
Giovanni em diante (1354). A aparência familiar que se revela entre Bernabò e o
pior dos Imperadores Romanos não concede espaço para erros: o mais importante
objecto público era a caça aos javalis do príncipe; quem interferisse com ela
era condenado à morte com tortura, as pessoas aterrorizadas eram forçadas a
manter 5,000 cães de caça ao javali, com estrita responsabilidade pela sua
saúde e segurança. p. 8
Em Giangaleazzo [sobrinho de Bernabò] essa paixão pelo
colossal que era comum à maioria dos déspotas revela-se na maior das escalas.
Ele empreendeu, com o custo de 300,000 florins de ouro, a construção de diques
colossais, para desviar em caso de necessidade o Mincio de Mântua e o Brenta de
Pádua, e assim tornar essas cidades desprovidas de defesa. Não é impossível, na
verdade, que ele tenha pensado em drenar as lagoas de Veneza. Fundou esse que
foi o mais belo de todos os conventos, a Certosa de Pavia, e a catedral de
Milão, ‘que excede em beleza e esplendor todas as igrejas da Cristandade’. O
palácio em Pavia, que seu pai Galeazzo tinha iniciado e ele próprio concluiu,
era provavelmente de longe o mais magnificente dos aposentos principescos da
Europa. Para aí transferiu a sua famosa biblioteca, e a grande colecção de
relíquias dos santos, na qual depositava uma fé peculiar. pp. 8-9
Nenhum outro ornamento estava mais em voga do que o cabelo
artificial, frequentemente feito de seda branca ou amarela*. A lei denunciava e
proibia-a em vão, até que alguns pregadores do arrependimento tocaram as mentes
mundanas daqueles que as usavam. Viu-se então, no meio da praça pública, uma
pira altíssima (talamo), na qual,
para além de alaúdes, caixas de dados, máscaras, amuletos, livros de canções, e
outras vaidades, jaziam pilhas de cabelo falso, que as chamas purgativas em
breve reduziriam a um monte de cinzas. A cor ideal procurada para cabelo quer
natural quer artificial era o loiro. E como se supunha que o sol tivesse o
poder de tornar o cabelo desta cor, muitas senhoras passariam o tempo inteiro
ao ar livre nos dias de sol. Tinturas e outros preparados eram usados com o
mesmo propósito. Para além de todos estes, encontramos uma lista interminável
de águas de beleza, gessos, e tintas para cada uma das partes da face – até
para os dentes, e pálpebras – os quais não podemos hoje conceber. p. 240
* Pedaços de cabelo verdadeiro eram chamados cappeli morti. Para um exemplo de falsos
dentes, feitos em marfim, e usados, embora apenas para efeito de clara
articulação, por um prelado italiano, ver [...] [nota 87, p. 373]
Também o uso de perfumes ultrapassou todos os limites do
razoável. Eles eram aplicados em tudo com que os seres humanos entravam em
contacto. Nos festivais até as mulas eram tratadas com essências e unguentos, e
Pietro Aretino agradece a Cosme I por um maço de dinheiro perfumado.
Os italianos desses dias viviam na crença de que eram mais
asseados do que outras nações. De facto há razões gerais que falam mais a favor
do que contra esta reivindicação. O asseio é indispensável à nossa noção
moderna de perfeição social, que se desenvolveu em Itália antes de qualquer
outro lado. (...) De qualquer modo é certo que a limpeza e asseio invulgares de
alguns distintos representantes do Renascimento, especialmente no seu
comportamento às refeições, foi notada expressamente*, e que ‘Alemão’ era o
sinónimo em Itália para tudo o que era imundo. p. 241
* O uso de lenços de bolso estava quase generalizado entre
as senhoras de Veneza, à aproximação do final do século XVI. [...] o lenço de
bolso ou fazzoletto já é mencionado
por um escritor Judeu-Italiano do século XIII. [nota 89, p. 373]
Jacob Burckhardt
The Civilization of the Renaissance in Italy
Phaidon
506 págs.
5 estrelas
sexta-feira, 9 de maio de 2014
Giuseppe Tomasi di Lampedusa por Edmund White (da NYRB)
Lampedusa era casado com uma baronesa do Báltico, Licy, que tinha o seu próprio castelo, Stomersee, em Riga. Durante a década de 1930 o príncipe e a princesa raramente estavam juntos, por isso trocaram centenas de cartas, as quais Gioacchino está agora a preparar lentamente para publicação. Também elas estão escritas em italiano, francês e alemão e falam longamente sobre as suas doenças reais e sobretudo imaginárias e os seus adorados cães. As invasões alemã e depois russa da Letónia obrigaram-na a mudar-se para Roma e depois para a Sicília, onde exerceu psicanálise com a pequena nobreza local. Ela tinha horárias completamente diferentes dos do marido, que gostava de acordar cedo. Licy acordava por volta das onze e preparava-se para um longo dia de tratamentos aos pacientes.
À noite ela e o príncipe iam ao cinema, ou ouviam gravações de Wagner, ou comiam uma das estranhas refeições dela. A princesa sentia tanta falta dos seus arenques com natas que marinava os arenques secos locais em leite por vários dias até começarem a borbulhar, o que a mantinha num estado constante de diarreia. O príncipe refugiava-se nos seus cafés de eleição, onde podia comer uma refeição decente e encontrar os seus amigos jovens e cultos e trabalhar, durante os três últimos anos de vida, n'O Leopardo. Aos jovens ele dava palestras sobre literatura que mais tarde seriam publicadas; também publicou histórias e livros sobre Stendhal e a liteartura do francesa do renascimento. Finalmente tinha conseguido escapar à preguiça do Sul.
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