quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A música da tundra - a digressão de Richter pela Sibéria


 «A única música que se ouve na tundra é a chaleira a assobiar ao lume»

Anna Nerkagi, escritora nenetse e defensora dos direitos dos nativos, in Sophy Roberts, Os pianos perdidos da Sibéria, p. 213


Agora um interessante excerto sobre a digressão do grande Sviatoslav Richter pela Sibéria em 1986:

«Em 1986, o lendário pianista soviético Sviatoslav Richter pegou num pedaço de cartão com o mapa da URSS e, com um marcador azul escuro, desenheu uma estrada através da Sibéria, preenchendo os nomes de todos os locais que queria visitar. Enfiou o mapa na sua mala e partiu para atingir o seu objetivo - uma viagem de Moscovo ao Pacífico, e volta, deslocandose em parte por estrada e em parte de comboio, parando amiúde para realizar recitais de piano. Nesta digressão épica, foi acompanhado pela sua amiga filóloga e escritora Valentina Chemberdzhi que, subsquentemente, publicou as suas recordações da viagem.

Richter tinha conhecimento das intensas digressões pelos estrangeiro feitas por Franz Liszt - e a comparação é esclarecedora. Os dois homens suportaram estradas infernais cheias de buracos para chegarem os locais onde queriam tocar. Também tiveram ambos de se remediar que os instrumentos que lhes punham à frente, Liszt a tocar no chocalhante Tompkinson vertical na sala de um hotel irlandês e Richter em todo o tipo de equivalentes soviéticos nas pequenas cidades espalhadas pela Sibéria. Ao contrário do que afirma um mito popular, Richter não levou consigo o seu Yamaha preferido («é difícil imaginar um piano de cauda num yurt ou na taiga!», comentou Valentina Chemberdzhi). «Na Rússia profunda, nem sempre tive esses instrumentos excelentes - nada disso, mas não atenção», disse Richter. «De qualquer modo houve alturas em que toquei em pianos horríveis, e toquei extremamente bem.» 

Richter, que odiava voar, visitou Khabarovsk, Chita (onde procurou os pianos dos Dezembristas e não conseguiu encontrá-los), Ulan-Ude, Irkutsk, Krasnoiarsk e Burnaul, bem como inúmeras povoações pelo meio. E Abakan, nas margens do rio Ienissei, um artigo local descreveu o frenesi suscitado por Richter: pela primeira vez, os siberianos podiam ouvi-lo a tocar ao vivo. Entre os palcos, contaram-se escolas de música e salas de concerto locais. Os programas de Richter - mesmo os garatujados em folhas de papel e afixados pouco antes do espetáculo - esgotavam sempre rapidamente a lotação das salas, por vezes em menos de 30 minutos. «A sala ficava cheia só por as pessoas passarem informação de boca em boca. Isto não acontece não ocidente», comentou uma vez. Com Richter, a simplicidade era o que estava em causa. Gostava de tocar às escuras para o público se concentrar na música e não no intérprete. «A única coisa que importa é que as pessoas não venham por snobismo, mas sim para ouvirem a música», afirmou. Lendo o relato de Valentina Chemberdzhi, parece que o público siberiano de Richter compreendeu: as suas descrições animadas revelam o gosto genuíno das pessoas por uma arte musical ao vivo, que fora precisamente como Denis Matsuev me descrevera a Sibéria no início da minha investigação.»


Sophy Roberts, Os pianos perdidos da Sibéria, pp. 281-282