Dei-me conta recentemente, ao ler em dias próximos uns epigramas de Marcial (38-104 d.C.) e umas máximas de Marco Aurélio (121-180), de que existem duas Romas. A Roma austera, viril, devotada ao dever - em suma, estóica - e a Roma brincalhona, maledicente, sensual, às vezes obscena, devotada ao prazer.
Podemos dizer com alguma propriedade que serão as duas faces da mesma moeda.
Essa dicotomia aparece bem representada numa máxima do imperador-filósofo: «A arte da vida assemelha-se mais à do lutador do que à do dançarino, pois o lutador deve estar sempre pronto e em guarda, mantendo-se firme contra os esforços súbitos e imprevisíveis do seu adversário». (recorro não à fonte original, mas ao livro de Ryan Holiday e Stephen Hanselman Estoico todos os dias, que está cheio de sabedoria antiga).
Mas este é talvez o melhor exemplo da Roma estoica, uma daquelas máximas gravadas na pedra:
«Lembra-te de que quando a mente se recolhe em si e encontra lá a tranquilidade, torna-se invulnerável. Não age contra a sua vontade, ainda que tal resistência seja irracional ou uma decisão deliberada e baseada na lógica... A mente sem paixões é uma fortaleza. Não existe nenhum lugar mais seguro. Assim que encontramos lá refúgio, estamos em segurança para sempre. Não perceber isto é ignorância; mas sabê-lo e não procurar este refúgio é uma infelicidade.»
Marco Aurélio, Meditações, 8. 48 (Holiday e Hanselman, p- 328)
E agora a Roma libidinosa, debochada, libertina...
«Gozemos a vida, Lésbia, fazendo amor,
desprezando o falatório dos velhos puritanos.»
(Catulo, Carmina, V)
E finalmente Marcial:
«QUE SEJAM MEUS VERSOS POUCO SÉRIOS
Que sejam os meus versos pouco sérios,
tais que o mestre os não pode ler na Escola,
tu lamentas, Cornélio. Porém, os meus livrinhos,
tal como às tuas consortes os maridos,
não podem sem caralho dar prazer.
Como escrever lascivo canto nupcial
sem usar lascivos termos nupciais?
Quem com traje de jogos florais, às meretrizes
permite que tenham seriedade de matronas?
Estes ligeiros poemas a uma lei obedecem:
apenas dão prazer se forem excitantes.
Por isso dá ao demo a seriedade,
não condenes, te peço, as minhas brincadeiras,
e tira da ideia castrar os meus livrinhos.
Nada há mais torpe que um Príapo capado!»
Epigramas, I, 36
(Estes dois excertos são retirados de Poemas Eróticos da Antiguidade Clássica, org. Victor Correia)