quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O chão debaixo dos nossos pés









Mais cedo ou mais tarde, todos acabaremos por ir parar lá a baixo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Axel Munthe, excertos de O Livro de San Michele

 «Os macacos gostam de rir de nós, mas a menor suspeita de troça da nossa parte irrita-os profundamente. Nunca devemos rir-nos de um macaco, porque não o podem suportar». p. 64

(Um longo parêntesis: 

O meu amigo Jorge Sande Lemos contava que o tio, que era diretor dos caminhos de ferro de Angola, certa vez em Benguela foi convidado para jantar em casa de um português lá radicado, provavelmente negociante. Para o prevenir, esse homem explicou-lhe que tinha um chimpanzé, creio, como criado, que ia servir à mesa. O convidado que não estranhasse - mas, sobretudo, que nunca se risse dele.


Excerto de entrevista do jornal Sol a Maria da Paz, tratadora de primatas do Jardim Zoológico:

Ouvi uma vez uma história de um homem, em África, que tinha um chimpanzé como criado, vestido a rigor, que servia à mesa e tudo. É possível treinar um primata a esse ponto?

Ter um chimpanzé vestido como criado, sim. Ter um chimpanzé treinado para levar coisas à mesa, sim. Agora, fazer uma refeição completa, já não acredito. Provavelmente teria um chimpanzé vestido como criado e se calhar levou alguma coisa à mesa. Não acredito que tenha levado tudo. Apesar de serem treinados, os chimpanzés não têm perfil submisso a esse ponto. Mas isso é uma situação muito estranha. Hoje em dia ainda há pessoas que dizem com orgulho que têm saguins e cercopitecos em casa. É horrível. Os animais têm de viver uns com os outros. Nós nunca vamos ter a capacidade de lhes dar o que eles precisam. O cão foi domesticado há milhares de anos e mesmo assim às vezes há problemas, quanto mais um animal selvagem.

Segundo a história que ouvi, o dono do chimpanzé dizia aos seus convidados: ‘Por favor, ajam com naturalidade, nunca se riam dele’. O escritor Axel Munthe também disse que os macacos gostam muito de se rir de nós, mas não gostam nada que as pessoas se riam deles. Isso é verdade?
Há uma coisa que é mostrar os dentes, que para nós é rir e para eles é um comportamento agressivo. ‘Estou-te a mostrar os dentes porque te vou morder. Vê como tenho dentes grandes para te morder’. Portanto, se eu me rir para ele, ele vai-se comportar como com os outros da sua espécie, pode-se tornar agressivo. Ele está a ler que é um comportamento da ameaça. Se eles se riem de nós? É preciso ter uma intimidade muito grande com os animais para perceber que eles se riem de nós – e não se riem como nós nos rimos, mas às vezes fazem determinadas coisas mesmo para nos chatear.)


Voltando a Axel Munthe e ao seu Livro de San Michele:

«A insónia não mata um homem, se este não se mata a si mesmo, e a falta de sono é uma das causas mais frequentes do suicídio. Mas mata a alegria de viver, mina as suas forças, suga-lhe o sangue do cérebro e do coração, como um vampiro. Lembra-lhe, de noite, o que o sono benéfico lhe deveria fazer esquecer. Faz-lhe esquecer, de dia, aquilo de que se devia lembrar.» p. 212

E ainda:

«Norstrom dizia sempre que eu tinha dois cérebros, que funcionavam alternadamente na minha cabeça: o cérebro bem desenvolvido dum imbecil e o cérebro mal desenvolvido duma espécie de génio.» p. 210


Axel Munthe em Capri, 1888-89


The precociously bright son of a Swedish pharmacist, Axel Munthe worked under Jean Martin Charcot, and in 1880, became the youngest doctor in French history. By the 1890s, he was world-famous for his healing powers, believed by some to be supernatural. He moved in the most colourful and exalted circles of fin de siecle Europe, counting amongst his friends Henry James, Howard Carter, Rainer Maria Rilke, Lady Ottoline Morrell and Count Zeppelin. Though physician to the Swedish court, where he became the lover of the Crown Princess Victoria, Munthe was more at home with nature than with people. He travelled through remotest Lapland, as well as across Europe, and his great love was animals, whom he went to great lengths to protect. In 1929 he published 'The Story of San Michele', an account of his life, shot through with his love for Italy and Capri, where he built a bird sanctuary and the house of his dreams, the Villa San Michele. The book became an international best seller, translated into 40 languages, and has become one of the classics of the last century.


Agora o saboroso epílogo desta história.

Uma bela quinta-feira, estava eu a chegar ao escritório, abro a porta e, na sala que antecede o meu gabinete, estava sentado JSB, o administrador. «Estou a fazer-lhe uma espera». Ri-me. «Não, estou mesmo. É que a minha mãe leu a sua crónica sobre o macaco, e diz que o macaco era da avó dela.» Não queria acreditar.

Tratava-se então de uma senhora argentina, viúva, que fez um cruzeiro onde conheceu um senhor português, e casaram-se em segundas núpcias. Em casa (presumo que em Benguela) tinham um chimpanzé, o Pepe, que servia à mesa e até tinha uma farda toda catita. JSB mostrou-me uma foto dele vestido (mas não com a farda de servir), a fumar. «Também ninguém se podia rir dele, ficava muito zangado e partia os pratos» (exatamente como me contou o Jorge Sande Lemos). «Mataram-no, porque achavam muita graça a vê-lo fumar, então davam-lhe cigarros. E bagaço. E ele ganhou o vício da bebida». Exatamente como Billy, o saguim de Axel Munthe, que se tornou alcoólico.

crónica no Nascer do SOL, 21/XI/2024

O chimpanzé que servia à mesa

Ao lançar o convite para jantar, o anfitrião fez um aviso: o convidado que não estranhasse ele ter um chimpanzé por criado, mas sobretudo que nunca se risse dele.

José Cabrita Saraiva

Tive em tempos a pretensão, entretanto abandonada, de escrever um livro de contos sobre homens e animais que reunia alguns episódios verídicos que fui ouvindo aqui e ali. A linha condutora eram as relações que transcendiam a barreira – real, convencionada ou imaginária – que nos separa das outras espécies. Havia a história dos pescadores chineses que usam corvos marinhos na faina e que para os domesticarem dormem com as crias nas primeiras semanas de vida destas, numa simbiose perfeita; a história de um caseiro que conseguia comunicar com os animais e que nunca tomava banho – certa vez em que foi obrigado a tomar, apanhou uma pneumonia e quase ia desta para melhor; a história de um polvo do Oceanário que se apaixonou pela sua tratadora, que graças aos seus cuidados conseguiu recuperá-lo quando ele se encontrava doente, mas, ao regressar ao seu país, provocou-lhe um desgosto tal que ele fugiu do aquário e acabou por morrer; e ainda a história de um pombo com uma asa partida que foi tratado por uma família mas acabou dentro de uma panela, transformado numa bela canja. Repito: todas estas histórias são reais.

Esqueci-me de referir talvez a mais curiosa, que me contou o meu amigo Jorge Sande Lemos quando trabalhávamos no Mosteiro dos Jerónimos. O seu tio, que julgo que era diretor dos caminhos de ferro de Angola, certa vez em Benguela foi convidado para jantar em casa de um português lá radicado, provavelmente um negociante. Aceitou de bom grado. Mas, p ara que ele não fosse apanhado de surpresa, o homem explicou-lhe que tinha como criado um chimpanzé, se não me engano, que ia servir à mesa. O convidado que não estranhasse – mas, sobretudo, que nunca se risse dele, pois isso poderia levar a um comportamento agressivo por parte do animal. Tanto quanto sei, o chimpanzé serviu mesmo à mesa e até estaria fardado. O convidado comportou-se com a naturalidade possível e a refeição passou-se sem sobressaltos.

Ainda acalentava o projeto de escrever esse livro de contos quando li O Livro de San Michele, de Axel Munthe (1859-1949), o médico e psiquiatra sueco, discípulo de Charcot e de Pasteur, que havia quem considerasse que tinha poderes de cura sobrenaturais. E recordei-me da história do chimpanzé que servia à mesa e do aviso do seu proprietário ao cruzar-me com esta passagem: «Os macacos gostam de rir de nós, mas a menor suspeita de troça da nossa parte irrita-os profundamente. Nunca devemos rir-nos de um macaco, porque não o podem suportar».

Um dia, quando entrevistei Maria da Paz, tratadora de primatas do Jardim Zoológico há cerca de trinta anos, perguntei-lhe se era possível um chimpanzé servir à mesa – não que duvidasse da palavra do meu amigo! «Provavelmente teria um chimpanzé vestido como criado e se calhar levou alguma coisa à mesa», respondeu-me. Portanto sim, era possível. Quanto ao facto de os macacos não gostarem que nos riamos deles, tem uma explicação simples: «Há uma coisa que é mostrar os dentes, que para nós é rir e para eles é um comportamento agressivo. ‘Estou-te a mostrar os dentes porque te vou morder. Vê como tenho dentes grandes para te morder’. Portanto, se eu me rir para ele, ele vai-se comportar como com os outros da sua espécie, pode-se tornar agressivo.

Só tempos mais tarde vim a descobrir que Axel Munthe tinha escrito também um livro chamado Homens e Bichos, o título que eu gostaria de dar ao meu. O médico sueco era um grande amante e defensor dos animais – tendo chegado ao ponto de comprar uma montanha por trás da sua villa em Capri para aí fazer um santuário para os pássaros. Entre os seus animais de estimação contavam-se vários cães e gatos, que passeavvam livremente entre as estátuas da Antiguidade que Munthe também colecionava, uma coruja, um mangusto e até um babuíno chamado Billy. Este, ao contrário do chimpanzé de Benguela, portava-se mal, tinha um problema com o álcool e não consta que servisse à mesa.