terça-feira, 17 de novembro de 2020

Der Untergang, Joachim Fest

Coloquei o título no original porque o português pareceu-me algo 'sensacionalista' (No bunker de Hitler - Os últimos dias do Terceiro Reich). Abri um pouco ao acaso e logo me deparei com esta passagem tremenda:

«Na capital reinava uma grande confusão. Todas as manhãs punham-se em marcha comandos de emergência, reunidos apressadamente, para reforçar as barreiras das ruas, cavar fossos antitanques, levantar defesas rudimentares com madeira e cimento. Apesar de, à volta da cidade, existirem letreiros que diziam 'Proibido aos refugiados manterem-se na capital do Reich!», nas ruas ainda acessíveis dos subúrbios passavam filas intermináveis de pessoas com cavalos, carroças ou gado, que muitas vezes se metiam nas zonas de combate. As estações estavam a abarrotar com comboios de mercadorias detidos, carregados de alimentos, de tropas de reforço e de feridos. Não havia dúvida de que os bombardeamentos tinham cessado desde que o Exército Vermelho estava perto. Mas a cidade continuava iluminada por novos incêndios e pelo turbilhão de pó incandescente e de partículas de cinza que caía como uma chuva fina e que cobria com uma capa de cal as fachadas, as árvores e as pessoas. Aviões russos sobrevoavam incessantemente a cidade. Os enervantes gritos das sirenes prosseguiam desde há semanas, mas agora tinham um som estridente e constante a assinalar o «alarme de tanques». Por todo o lado viam-se veículos militares queimados ou abandonados por falta de combustível. A artilharia soviética, que se tinha posicionado à volta da cidade, alcançava já todos os bairros incendiando casa antes de avançar com a infantaria. Até algumas ruínas voltaram a ser atacadas pelo fogo, como observam relatos dessas semanas.

Em cada dia que passava, havia uma fábrica, uma oficina ou um serviço de abastecimento que deixava de trabalhar. Muitas vezes faltava a água durante várias horas e, desde o dia 22 de Abril, era condenado quem utilizasse eletricidade para cozinhar. No asfalto amolecido acumulavam-se destroços e lixo, que, juntamente com o cheiro omnipresente da carne queimada, provocam um fedor insuportável. Especialmente nos bairros no interior da cidade, as pessoas não saíam durante dias das caves e das passagens subterrâneas do metro. Aquelas que tentavam sair, cobriam as caras com panos molhados para se protegerem contra os vapores cáustico de fogo e fósforo. A simples sobrevivência era muito difícil. Os últimos jornais, assim como os cartazes afixados nas colunas de anúncios, continham uma mistura de palavreado de vitória e ameaças, em conjunto com bizarros conselhos acerca da maneira de superar os perigos da vida diária. Para melhorar 'a base de proteínas', dizia um desses conselhos, a população devia ir aos inúmeros lagos da cidade e caçar rãs, o que facilmente conseguiam 'ao arrastar trapos de cores na superfície da água perto da margem'.» pp. 85-86


 No Bunker de Hitler. Uma excelente iniciativa da Guerra & Paz







Memórias do Miguel Bombarda (António Lobo Antunes)

Hoje no Facebook deparei-me com este texto muito bonito do António Lobo Antunes. Chama-se 'Ontem voltei a ser feliz' e foi publicado na revista Visão de 22 de novembro de 2018. Gosto especialmente de memórias - de lugares, de acontecimentos, de pessoas, de tempos que já não voltam. E esta é maravilha de simplicidade, estranheza e engenho.

«Ontem jantei com uma mulher muito atraente. E nova. Mais ou menos trinta anos, loira natural, olhos verdes, uma pele e um sorriso lindos, boa figura
(cerca de um metro e setenta)
bem vestida, inteligente, com imensa graça, médica e tudo. E, por cima disto, um pai infinitamente sedutor: eu. A certa altura ela
(Chama-se Isabel, queria chamar-lhe Eva em homenagem à minha avó germânica mas a minha mãe tirou-me logo as peneiras com uma simples pergunta
– E se ela for feia?
porque, de facto, Eva e feia são duas coisas que não se aguentam bem juntas, de modo que mudei logo para Isabel)
a certa altura do jantar a Isabel começou a recordar-se de quando, em pequena, eu a levava ao Hospital Miguel Bombarda tal como o meu pai, éramos nós miúdos, nos levava também, e por ali andávamos com ele numa mistura de espanto e medo. Quer o meu pai quer eu gostámos imenso de trabalhar naquele sítio. As pessoas internadas fascinavam-me, aprendi o mais importante da vida com elas, com a sua criatividade, o seu humor, o seu sofrimento. A Isabel, então com cinco ou seis anos, lembrava-se de uma série de vinhetas extraordinárias. Por exemplo do doente
(classificavam-nos como doentes)
e orelha pegada a uma parede, à escuta, na careta franzida de quem espera ouvir. À nossa frente caminhava um enfermeiro a quem o doente pediu que encostasse também a orelha. O enfermeiro encostou, desencostou, disse ao doente
– Não ouvi nada
foi-se embora e ele para mim, apontando a parede, resignado
– Anda há horas nisto.
E continuou atento, imóvel, aguardando, porque aquilo, pensando bem, não era um hospital mas a Alice no País das Maravilhas a sério. Recordo-me da senhora que em lugar de
– Bom dia
me saudava
– Cri cri cri foguete
que me parece muito mais apropriado, ou do pintor francês que quando o meu pai lhe perguntou se tinha filhos respondeu indignado
– Não senhor doutor eu não fabrico cadáveres
ou da velhota grávida do Menino Jesus, sempre a tricotar casaquinhos de malha para a Divina Criança,
ou do homem (acho que já falei nele)
que me transmitiu, numa simples frase, a técnica da criação artística, que ainda hoje utilizo, ao informar-me
– Sabe, o mundo começou a ser feito por detrás
o que me ajudou a resolver, de golpe, uma série de dificuldades,
ou do Valdemiro, que me ensinou a voar
– Cuidado com os ramos mais altos
ou do sujeito que ligou para a Urgência declarando
– Daqui a meia hora estou aí para matar o chefe de equipa
bem vestido, bem penteado, de gravata e pistola na mão, disse-lhe
– Mate-me mas primeiro sente-se ao meu colo um bocadinho
e sentou-se de pistola na mão, e depois abraçou-me, e depois desatou a chorar porque a vida não é verdade, porque a vida senhor doutor, porque a vida, porque a vida, porque a vida, o enfermeiro pegou na pistola
– Isto tem mesmo balas sabia?
comigo cheínho de vontade de chorar por ele também. Meu Deus o que as pessoas sofrem, somos todos tão frágeis, tão à mercê de tudo, estamos tantas vezes tão infinitamente sós. No Hospital Miguel Bombarda, onde o professor Miguel Bombarda foi assassinado a tiro, ele, agonizante, impediu que matassem o seu assassino ordenando
– Deixem-no, é um pobre
e, de facto, somos todos tão pobres, estamos todos, tantas vezes, tão sós. Felizmente resta a esperança que as paredes, mesmo apesar de andarem há horas nisto, nos coloquem a palma no joelho e garantam, numa ternura que nos anima de novo
– Descanse que daqui a nada elas conversam consigo».

António Lobo Antunes (n. 1942), foto de 2010 tirada da wikipedia