quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Prefab Houses



Se tirássemos as três primeiras letras, ficaria Fab Houses (Casas Fabulosas). E, de facto, algumas não andam longe disso. A nave espacial da capa foi baptizada Futuro e data de 1968. Esta casa de férias portátil tem a assinatura do finlandês Matti Suuronen e é típica do optimismo da Era Espacial (recorde-se que o homem chegou à Lua a 21 de Julho do ano seguinte, 1969). Disse 'portátil' e bem: uma fotografia da época mostra a casa a ser levada num helicóptero.

Mas na maioria das vezes as casas pré-fabricadas foram transportadas de barco. A sua epopeia começou em 1833 quando Herbert Manning, um carpinteiro inglês, imaginou, concebeu e realizou uma casa que o seu filho pudesse montar na Austrália. Era composta por estacas, vigas e tábuas de madeira e coberta por um pano grosseiro.

A história fascinante da casa oferecida a Albert Einstein pelo seu 50.º aniversário é outra das que compõem o livro. Sabendo da paixão do físico pela vela e da sua preferência por casas de madeira, a cidade de Berlim ofereceu-lhe um abrigo em Caputh, junto ao lago. Einstein passou ali longas temporadas, entre 1929 e 1932, ano em que teve de se exilar nos Estados Unidos.

Outra personagem que merece destaque é Buckminster Fuller 1895-1983). O Comilão teve oportunidade de ver uma exposição que lhe foi dedicada pelo Whitney, em NY, em Setembro de 2008. Buckminster Fuller foi um engenheiro, designer e pensador visionário. A sua vida mudou quando a morte da sua filha por doença o levou a considerar o suicídio. Afastou essa hipótese determinado a descobrir «o que um indivíduo sozinho pode fazer em prol da humanidade». Popularizou a cúpula geodésica (a estrutura mais resistente e leve que é possível montar), retomando um invento de Walther Bauersfeld, cuja forma seria utilizada nas bolas de futebol de gomos. Uma das suas preocupações foi o bom uso dos recursos naturais.

A casa Dimaxion (projecto de 1929, melhorado em 1945), suportada por um pilar vertical ao centro, tinha um chuveiro que poupava água e um sistema de ventilação inovador. Foi concebida para ser entregue em dois pacotes cilíndricos e para resistir a ventos fortes. Toda em alumínio, usava tecnologia aeronáutica e devia ser feita nas mesmas fábricas onde haviam sido feitos os aviões da II Guerra, mas nunca chegou a ter produção industrial. Ainda sobre Buckminster Fuller: disse numa entrevista que durante dois anos dormiu apenas duas horas por dia; costumava andar com três relógios devido às frequentes viagens entre regiões com diferentes fusos horários.

Prefab Houses
Peter Gössel (ed.), Arnt Cobbers e Oliver Jahn
Taschen
388 págs., 50 euros
4 estrelas

Escritores à mesa

Como não podia deixar de ser, o Comilão devorou o último livro do Comilão-mor, que também dá pelo nome de José Quitério. A obra chama-se Escritores à Mesa (e outros artistas) e versa sobre trechos literários de Camões, Camilo (o eleito de Quitério), Eça, Fialho, Aquilino, Pessoa, José Gomes Ferreira, etc., onde se fala de comidas e bebidas. O próprio autor escreve numa prosa escorreita e saborosa, usando um vocabulário rico a que não faltam certos arcaísmos. O capítulo 'Claude Lorrain, mestre pasteleiro', merece aplauso. O Comilão já conhecia os dotes de Lorrain como pintor de efeitos luminosos em fins de tarde clássicos, mas desconhecia a sua mão para a cozinha. Foi o inventor da massa folhada.

Transcrevo um excerto que também me chamou a atenção pelo total desconhecimento do biografado:

«Em 17 de Maio de 1997, no seu Rio de Janeiro, morreu Guilherme Figueiredo. Quem?
Nascido em Campinas a 13/02/1915, Guilherme Figueiredo naturalizou-se carioca aos cinco anos e formou-se em Direito pela Universidade do Rio. Não consta que tenha feito carreira jurídica, o que só lhe fica bem. As letras foram sempre a sua paixão, estreando-se em 1936 com um pequeno volume de poesia. [...]

Espírito aberto, cordial, crítico, bem humorado e generoso, aconteceu-lhe às tantas uma desgraça, a de ser irmão mais velho do general João Baptista de Figueiredo, o último Presidente da República (1979-1986) da ditadura militar. Logo a ele, democrata praticante e inimigo da censura. Dizia sobre esta: 'Sim, admito a censura. Mas a do público que não vê peça ruim e não lê livro ruim [...]'. Desde logo punha os pontos nos is: 'Não sou irmão do Presidente, ele é que é meu irmão.'»

Escritores à Mesa (e outros artistas)
José Quitério
Assírio e Alvim
274 págs., €15,5o
3,5 estrelas

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O famoso frango na púcara do Comilão

É um prato fácil de fazer. Pede-se no talho um frango partidinho em pedaços pequenos. Põe-se num tacho fundo com um bocadinho de banha e toucinho. Junta-se alho, louro e cebola. A parte mais chata é pelar os tomates (três ou quatro, sem grainhas), que se deitam para o tacho quando o frango já tiver começado a alourar. Com os tomates vão também pimentos verde e encarnado, cortados às tiras, e rodelas de cenoura. Quem goste também pode deitar lá para dentro alguns dos miúdos do frango bem partidinhos. Verte-se uma boa dose de polpa de tomate e um fio de azeite para cima da caldeirada. Fica na panela de pressão a adubar durante uns três quartos de hora. Aí dez minutos antes de estar pronto rega-se generosamente com um bom vinho branco. O resultado é um caldo abundante cor-de-laranja avermelhado. Pode levar-se à mesa numa terrina e serve-se com uma concha de sopa. Acompanha com arroz (o basmati liga bem porque é levezinho). Ontem o Comilão brindou os seus convidados (entre os quais se encontrava o Sr. Prior) com esta iguaria e não houve queixas - muito pelo contrário. Além do arroz, acompanhou com batata doce frita (se ainda não experimentaram façam-no rapidamente) e uma deliciosa salada de alface, cebola e agrião temperada com vinagre balsâmico e azeite perfumado com manjericão. A mulher do Comilão preparou uma bela sobremesa: bavaroise de banana e caramelo, com uma bola de gelado em cima e um fio de chocolate quente.

sábado, 14 de agosto de 2010

Uma anedota

Depois do McDonald's, o Pingo Doce. No folheto Sabores Mediterrânicos desta semana pode ler-se o seguinte:

«ROBALO
Um dos mais nobres visitantes das costas portuguesas [...]».

Quem é que eles querem enganar? Estão a falar de robalos a 6,49€/ kg, com cerca de 300 g cada, provenientes de viveiros de aquacultura na Grécia, e têm o descaramento de dizer uma coisa destas? Francamente...

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Henri Troyat, Rasputine



O Comilão já conhecia Henri Troyat de outras andanças, mais concretamente pela monumental biografia de Tolstoi (Fayard, 1965, 842 págs.). Troyat nasceu em Moscovo em 1911 e a sua família teve de fugir da Rússia aquando da revolução de outubro de 1917. Eleito para a Academia francesa em 1959, acabaria por falecer em 2007. O Comilão imaginava-o um homem ascético e de longas barbas, como estes dois biografados, mas a fotografia da contracapa do Rasputine desmente por completo essa imagem, mostrando um homem vigoroso com ar de Onassis, modernos óculos pretos de massa e uma camisa de manga curta.

Gregório Rasputine é uma figura de lenda. Nasceu a 10 de Janeiro de 1869 numa pequena aldeia da Sibéria. Em criança esteve às portas da morte, sobrevivendo a uma pneumonia contraída nas mesmas circunstâncias que o irmão, o qual vez não resistiu. Tinha o ímpeto de peregrinar, andar por essa vasta Rússia fora como um mendigo (staretz), visitando mosteiros e homens santos, e nem o casamento o prendeu à aldeia.

Introduz-se no palácio da família imperial através do bispo Teófano, confessor dos Romanov. E adquire um bestial prestígio junto da imperatriz Alexandra Fedorovna quando cura o seu frágil filho Alexis em 1907 (virá a fazê-lo novamente em 1912). O facto de ter os modos e os hábitos de um camponês jogam a seu favor. Todos os que com ele privam reconhecem-lhe um estranho poder hipnótico. A czarina chama-lhe «meu inolvidável amigo e mestre, salvador e conselheiro» (pág. 47), e os pequenos têm por ele uma adoração sem limites.

Conquista uma justa reputação de mulherengo, alcóolatra e devasso. É um beberrão insaciável e grande apreciador de vinho da Madeira. Quando a guerra rebenta em 1914, ele opõe-se firmemente. Mas a Rússia sofre derrota atrás de derrota e, como conselheiro dos czares, todas as desgraças lhe são inculcadas. O país vive momentos difíceis. E, numa premonição de embriagado, diz ao seu secretário para transmitir estas palavras aos czares: «Czar da terra russa, se ouvires um sino a dizer que Gregório foi morto, fica a saber que, se for um dos teus que provocou a minha morte, nenhum dos teus, nenhum dos teus filhos viverá mais de dois anos. Eles serão mortos pelo povo russo». Estranha e negra profecia.

As páginas mais interessantes, contudo, são as que descrevem o assassino de Rasputine e a cilada que lhe prepara:

«O príncipe Félix Felixovitch Youssoupov, de vinte e nove anos de idade, pertence a uma das famílias mais nobres e mais ricas do país. Uma infância demadiado mimada fez dele um ser ambíguo, caprichoso, refinado, preguiçoso e impulsivo. Desde a sua juventude que se sentiu atraído pelas imagens do vício e da morte. Se uma obra de arte é insólita ele logo declara que lhe agrada. Quer ser dandy nos seus pensamentos como na forma das suas unhas ou nos caracóois do seu penteado. Alto, o rosto fino, o olhar lânguido, gostava, na sua adolescência, de se mascarar de mulher.» (pág. 147)

É este príncipe dissimulado que se faz amigo do staretz e o convida para a sua casa, para lhe dar a morte. Tenta-o com veneno, mas não resulta e acaba por o matar com tiros de pistola, profanando o cadáver com golpes de matraca. Acabam por atirá-lo ao rio.

«O escafandrista mergulha de novo e, desta vez, encontra um cadáver imerso sob a espessa placa branca que cobre o rio. É preciso quebrar o gelo para o retirar. [...] Chamadas para o identificar, Maria e Varvara contemplam com horror o cfadáver gelado do seu pai: 'Tinha o crânio amachucado, a cara pisada, escreverá Maria; os cabelos estavam colados com o sangue. Tinham-lhe arrancado o olho direito. Estava pendurado na face, preso por um pedaço de carne.'» (pág. 170) Uma antiga devota de Rasputine testemunha às filhas deste que «o corpo que esteve a tratar tinha sido mutilado com uma selvajaria incrível; não apenas a cara, mas os testículos estavam desfeitos por pancadas.» (pág. 171)

O resto é o triunfo da revolução bolchevique a história não menos dramática da família imperial. Estranhamente a profecia de Rasputine cumpriu-se e a dinastia dos Romanov só lhe sobreviveu um ano e meio.

Henri Troyat
Rasputine
Difel
195 págs., cerca de €12
3,5 estrelas

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O fim do mundo


Há muito tempo que já andava desconfiado, mas tive a certeza absoluta de que o mundo estava perdido numa terça-feira. Não faltava muito para as onze da noite e esperei mais de 20 minutos para ser servido num McDonald's da capital.

Anteontem, a certeza agravou-se. O Comilão começou a ficar cheio de fome (só tinha comido um pastelinho de bacalhau, por sinal muito bom, ao lanche), quando olhou para o relógio e verificou que eram quase 23h00, hora de fecho do dito 'restaurante' de fast food mais próximo. Saiu a correr para o local, mas àquela hora o McDonald's tem certas pecularidades, como já não haver nada para comer, ou as pessoas ficarem muito mais tempo do que o habitual à espera, enquanto os empregados dão mostras de uma descontracção pré-fecho.

Foi nessas circunstâncias - e a morrer de fome - que o Comilão esperou mais de quinze minutos para ser atendido. Só isso merecia entrada directa no Livro dos Records do Guinness. Houve uns gays que lhe perguntaram se estava na fila, o Comilão disse que sim, mas eles ignoraram a resposta e passaram miseravelmente à frente enquanto o Comilão estava distraído. O Comilão não protestou porque eles eram dois e tinham tatuagens.

Quando estava quase a chegar a sua vez, apareceu uma rapariga estrangeira com um wrap, que era o que o Comilão ia pedir, uma vez que já não havia iogurte e a nova especialidade demorava muito a sair (a propósito: porque é que as iguarias novas no McDonald's são tão difíceis de obter?). A rapariga disse que era vegetariana e não podia comer aquilo. Nem lhe tinha tocado quando viu que era carne (frango). Entregou o embrulho ao empregado dizendo podia dar a quem o quisesse. O Comilão avançou. 'Eu posso ficar com isso. Tenho pressa e estou cheio de fome'. O estupor do empregado (perdoem a linguagem, mas estupor para aquele homem é um elogio) respondeu: 'Agora já é tarde'. Tinha deitado o embrulho intocado no lixo.

Tudo bem que não haja uma diferença substancial entre lixo e comida do McDonald's (por alguma razão se lhe chama junk food), mas em princípio o lixo está cheio com restos de comida de outras pessoas, que é a única coisa ainda mais repugnante do que a própria comida.

O Comilão tentou manter o sangue-frio e pediu um wrap novo em folha e entregou uma nota de €10 para pagar. Embora tivesse acabado de receber um monte de moedas (tarefa em que tinha dispendido uns bons minutos, entre risos e piadolas), o estupor do empregado disse que não tinha troco. E, atrevimento dos atrevimentos, disse ao Comilão para ir trocar a nota noutro estabelecimento! O Comilão guardou a nota na carteira e retirou-se a resmungar: 'Ainda há quem diga que o mundo não está perdido...'.

p.s. O Comilão espera que os responsáveis do McDonald's não leiam este post, ou arriscamo-nos a que lancem uma bomba de neutrões sobre o país onde a tradição de bem-servir da instituição foi tão desonrosamente maculada.

Tony Judt (1948-2010)


Morreu na sexta-feira passada o historiador Tony Judt. Em Portugal era conhecido sobretudo pelo livro Pós-Guerra - História da Europa desde 1945 (edições 70), que lhe valeu o Prémio do Livro Europeu. A capa mostra uma fotografia de dois meninos de mão dada (a caminho da escola, presume-se) numa cidade destruída. Mas o texto de Judt que mais tem apaixonado as pessoas, sobretudo agora que ele morreu, chama-se Night e foi publicado no número de 14 de Janeiro de 2010 da New York Review of Books. O Comilão leu-o, na altura, sentado a uma mesa do Meu Café, em Campo de Ourique. Esse testemunho arrepiante começa precisamente assim:

«Sofro de uma perturbação motora neurológica, no meu caso uma variante da esclerose lateral amiotrófica (ELA): a doença de Lou Gehrig. [...] Ao contrário de quase todas as outras doenças graves ou mortais, uma pessoa pode contemplar assim à vontade e com o mínimo de desconforto a evolução catastrófica da sua própria deterioração.[...]
Pelo meu presente estado de declínio, estou efectivamente tetraplégico. [...] No mínimo, estou irremediável e completamente dependente da bondade de estranhos (e mais alguém).
Durante o dia posso pelo menos solicitar uma coçadela, um ajuste, uma bebida ou simplesmente uma deslocação gratuita dos meus membros - uma vez que a imobilidade forçada ao fim de horas se torna não apenas fisicamente desconfortável como psicologicamente quase intolerável. [...]
É então que chega a noite. Adio a hora de ir para a cama até ao último momento possível ainda compatível com a necessidade de sono da minha enfermeira. Uma vez 'preparado' para a cama sou levado para o quarto na cadeira de rodas onde passei as últimas dezoito horas.[...] Se permito que um membro qualquer seja mal colocado ou não insisto o suficiente para que o diafragma fique cuidadosamente alinhado com a cabeça e as pernas, acabarei por sofrer durante a noite as agonias dos danados.»

A caricatura é de David Levine.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

David Sedaris, Diário de um fumador




Depois de ter lido as primeiras dezenas de páginas, o Comilão achou que o comentário da capa era manifestamente exagerado. Esse comentário rezava assim 'O homem mais divertido do mundo' e vinha assinado New York Post. Porém, quando começou a ler o capítulo que dá o título ao livro, em que nem depositava grandes esperanças, o Comilão teve de reconsiderar.

Aqui fica um aperitivo:

«Quando passou a ser proibido fumar nos restaurantes de Nova Iorque, deixei de comer fora. Quando passou a ser proibido fumar no local de trabalho, deixei de trabalhar, e quando aumentaram o preço dos cigarros para sete dólares cada maço, peguei nas minhas coisas e fui viver para França.» pág. 194

«Não sei porque é que as más ideias se espalham mais depressa do que as boas, mas é assim. Um pouco por todo o lado, foi sendo proibido fumar, e acabei por ir parar aos arredores das cidades, àquele ubíquo espaço comercial entre o restaurante de panquecas e a loja de silenciadores de tubos de escape. Talvez não tenham reparado, mas existe aí um hotel. Não tem piscina, mas, mesmo assim, a entrada cheira bastante a cloro, com um leve aroma a batatas fritas. Se, por acaso, pedirem as ditas ao serviço de quartos, e se precisarem de mais ketchup, basta tirar um bocado do que está agarrado ao telefone, ou ao botão do aquecedor e ar condicionado que está montado na parede. Também lá há mostarda. Já vi.
A única coisa pior que um quarto neste hotel é um quarto para fumadores neste hotel. Com um pouco de ar fresco, não seria tão terrível, mas, nove em cada dez vezes, as janelas foram soldadas. Ou isso, ou abrem meio centímetro, para o caso de se ter de atirar um bocado de torrada pela janela. O fumo encurralado e estagnado é tratado com um ambientador, e os resultados variam bastante. Na melhor das hipóteses, faz lembrar um cinzeiro cheio, com as beatas a boiar em limonada. Na pior das hipóteses, cheira a múmia queimada.» pág. 200

David Sedaris
Diário de um fumador (título original: When you're engulfed in flames, retirado de um folheto sobre segurança que o autor encontrou num quarto de hotel no Japão, pág. 240)
Contraponto
251 págs., €17,5
4 estrelas

intelectuais de algibeira

Só falam sobre arte contemporânea e literatura pós-moderna. Movimentam-se no seu limitado meio como peixe na água (no aquário). Acham-se o máximo porque mandaram vir o último livro do autor do momento pela internet, mas nunca se deram ao trabalho de ler as obras por que esse autor se tornou famoso. Talvez nunca cheguem ao fim do livro, mas que importa? Estão sempre em cima do acontecimento e isso é quanto basta para considerarem os outros uns parolos.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Alecrim às Flores

O Comilão e a sua mulher foram jantar fora. Depois de longas indecisões (e de uma passagem pelo Casanova, em Santa Apolónia, que para variar estava com uma fila monstruosa), encaminharam-se para a Rua do Alecrim. A ementa da Charcutaria revelou-se aliciante. Mas, quando o empregado do Alecrim às Flores se prestou a montar uma mesa na esplanada (todas as outras estavam ocupadas), não pudemos recusar a oferta. E, com a noite que estava, seria quase um crime não jantar ao ar livre. O Comilão ficou logo bem impressionado com o facto de a lista do Alecrim às Flores ('encravado' numa travessa entre a Rua do Alecrim e a Rua das Flores) ostentar um Bife do Lombo à Quitério (frito em manteiga com alho e louro), em honra ao nosso grande crítico de restaurantes.

O início foi promissor, com um pão delicioso, uma manteiga levezinha e azeitonas bem temperadas. As entradas, assim-assim: gambas fritas com alho e alecrim (além da dose ser pouco abundante, o sabor do alecrim sobressaiu demasiado, parecendo quase a detergente) e folhadinhos com queijo de cabra e compota de frutos silvestres (estavam bonzinhos, mas os €7 talvez fossem exagerados).

Entre as entradas e o prato principal esperámos o que pareceu uma eternidade. Fomos bebendo do enorme jarro de sangria de vinho tinto (óptima e aparentemente pouco alcoólica, de preço a condizer com a quantidade: €18). Quando já perdíamos a esperança de comer mais alguma coisa, chegou o prato principal: costeletas de borrego grelhadas com risotto de cenoura (originalmente vêm acompanhadas de um risotto de abóbora em que o Comilão depositava grandes expectativas, mas ao fazermos o pedido o empregado avisou que já tinha terminado e seria substituído pelo equivalente de cenoura). O risotto estava delicioso. Quanto às costoletinhas, o Comilão sentia-se tentado a reputá-las de divinais, não fosse o sangue que delas se libertava - mesmo com aquela iluminação diminuta - lembrar-lhe que estava a cometer um pecado da carne.

Quando chegou o descafeinado, a empregada pediu desculpa por não estar 'mais bonito', mas o descafeinado, ainda para mais curto, não fazia espuma. Agradecemos a atenção. Esperámos mais uma eternidade por que nos trouxessem a conta e, mesmo assim, ainda tivemos de nos esforçar por esvaziar o jarro de sangria, de tão grande que era.

Total: €59,50 + gorjeta. Serviço lento, mas sempre simpático.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

bife do lombo e chorizo

No sábado passado o Comilão fez um bife como mandam as regras. O sucesso começa no supermercado ou no talho, com a escolha da carne. Neste caso era carne mertolenga de grande qualidade, tipo medalhões do lombo (custou €8,88, o preço é justificado). Comecei por pôr margarina a aquecer, quando estava derretida juntei alho e louro, quando o alho alourou tirei-o da frigideira para não queimar e pus os bifes. Assim os bifes fritaram na manteiga já aromatizada com o alho e o louro. Deixei cerca de um minuto, talvez um pouco menos, de cada lado, para ficar mal passado. Uma coisa que já tenho tentado é juntar vinho branco para disfarçar o sabor da carne quando não é boa. Um erro: a carne fica a cozer no líquido, o que não é desejável. Claro que neste caso isso não foi preciso.

Já na quarta-feira o Comilão comprou 'chorizo argentino' do Chakall. O chorizo é na realidade muito mais parecido com uma salsicha fresca do que com o nosso chouriço. Talvez tenha chegado à Argentina por via italiana. Não tem nada que saber: o chorizo já vem temperado, por isso é só pôr na grelha, cortar ao meio quando começar a ficar coradinho, e virar. Por acaso fizemos um tempero com azeite, água, sal, vinagre de cidra, alho esmagado e pimenta preta moída, mas nem seria estritamente necessário. Acompanhámos com arroz branco e salada de tomate, cebola, pimentos e orégãos. Uma refeição muito agradável.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Oliver Sacks


O Comilão terminou há pouco O Tio Tugsténio - Memórias de uma infância química, de Oliver Sacks. Trata-se de um apaixonante livro de memórias com alguns capítulos (talvez cerca de metade) dedicados à história da ciência. Apesar da escrita brilhante de Sacks, esta componente histórico-científica torna-se por vezes algo cansativa (pelo menos para um leigo como o Comilão). Mas devemos sobretudo enaltecer as qualidades da obra e agradecer ao autor por nos ter deixado uma mão cheia de episódios deliciosos e personagens memoráveis.

Destacaria aqui alguns pontos altos:

as dez páginas (98-108) dedicadas às biografias, descobertas e inventos de Robert Boyle, do seu não menos dotado ajudante, Robert Hooke, e de Antoine Lavoisier;

o capítulo 9 ('Consultas ao domicílio'), descrevendo a actividade do pai e da mãe, ambos médicos, que tinham consultório na grande casa da família;

o capítulo 12 ('Imagens'), onde Sacks fala sobre um dos seus passatempos favoritos, a fotografia, pondo-nos a par dos vários desenvolvimentos desta técnica e das experiências que efectuava em casa;

o capítulo 15 ('Vida doméstica'), sobre os ritos e cerimónias judaicos, sobretudo, e a paixão dos Sacks pela música («Em criança, parecia-me que a casa estava sempre cheia de música. Havia dois Bechsteins, um vertical e outro de cauda, e, por vezes, ambos estavam a ser tocados em simultâneo»);

o capítulo 19 ('A mamã'), o meu favorito. Não posso elogiá-lo o suficiente. Começa com este parágrafo formidável que reproduzo:

«Certo Verão, em Bournemouth, depois da guerra, consegui que um pescador me desse um polvo muito grande, ainda vivo, e mantive-o na banheira do nosso quarto de hotel, que enchi com água do mar. Alimentava-o com caranguejos vivos, que ele desmembrava com o bico córneo, e penso que o bicho se afeiçoou bastante a mim. Não tenho dúvidas de que me reconhecia quando eu entrava na casa de banho, e a sua pele tingia-se de diferentes cores, indicando a emoção que sentia. Embora já tivéssemos tido cães e gatos em casa, eu nunca tivera um animal só meu. Agora, concretizara esse desejo, e achava o meu polvo tão inteligente e afectuoso como qualquer cão. Queria levá-lo comigo no regresso a Londres, dar-lhe uma casa, um enorme tanque adornado com actínias e algas marinhas, tê-lo como meu bicho de estimação, meu e só meu.»

É também aí que Sacks fala da mesa de Morrison, «uma enorme mesa de ferro colocada na sala de pequenos-almoços que, pretensamente, era sólida que chegue para suportar o peso de toda a casa se esta fosse bombardeada», e de outras coisas tão insólitas quanto deslumbrantes;

os capítulos 18 ('O fogo frio') e 21 ('O elemento de madame Curie'), dedicados à fosforescência e à radioactividade, também são fascinantes.

Apesar de ter dedicado a infância a alimentar o seu interesse insaciável pelas ciências exactas (sobretudo a Química), Oliver Sacks acabou por se tornar um psiquiatra de renome. Talvez a vocação lhe tenha sido despertada pela esquizofrenia do seu irmão Michael (cuja degeneração aparece descrita nas págs. 170-172).

Oliver Sacks
O Tio Tungsténio
Relógio de Água
292 págs., preço variável (€16,15 na livraria online Wook, neste momento encontra-se a €10 na Fnac e eu comprei-o na Feira do Livro por €7,5. Seja qual for o preço, cada cêntimo é justificado)
4,5 estrelas (não tem 5 estrelas devido às páginas instrutivas mas relativamente esotéricas sobre elementos químicos e descobertas científicas)